sábado, 5 de dezembro de 2009

Notas do Autor


  • O uso dos fichamentos é por sua conta e risco. Como sabem, a metodologia de se realizarem sorteios para reduzir o número de trabalhos a serem corrigidos torna razoável a chance de se encontrarem efetivamente repetições.
  • Até onde me lembro, os textos abaixo são meras transcrições extendidas de frases dos textos originais. Estes ainda se encontram disponíveis, digitalizados em pdf (com ocr) no grupo de discussão do 3º ano. Clique aqui.
  • Infelizmente, este ano não tive tempo para compilar materiais, mas sempre fica a idéia para que alguém o faça para as próximas turmas (e para arquivamento próprio).

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

BALBACHEVSKY, Elizabeth. Stuart Mill: Liberdade e Representação. In: WEFFORT, Francisco C. (org.) Os Clássicos da Política. São Paulo, Editora Ática,

BALBACHEVSKY, Elizabeth. Stuart Mill: Liberdade e Representação. In: WEFFORT, Francisco C. (org.) Os Clássicos da Política. São Paulo, Editora Ática, 2004, vol. 2.
Estrutura: Stuart Mill: Liberdade e Representação. Um novo liberalismo. Indivíduo e Liberdade.
Resumo:

John Stuart Mill é filho de James Mill, considerado um dos fundadores do utilitarismo inglês. Desde a sua mais tenra infância, Mill se viu às voltas com os projetos educacionais de seu pai, determinado a fazer do jovem Mill o porta-voz da escola utilitarista para as novas gerações. Ao longo dos 67 anos de sua vida, Stuart Mill foi testemunha de mudanças fantásticas tanto na sociedade como na política e na economia de seu país, a Inglaterra. Tão importantes quanto estas transformações na economia e na sociedade inglesa daquela época foram as mudanças que se verificaram na política daquele país. Nesta dimensão, os resultados podem ser agrupados em dois grandes blocos. (1) Em primeiro lugar temos a constituição de um conjunto de instituições capazes de canalizar e dar voz à oposição, criando um sistema legítimo de contestação pública. (2) Em segundo lugar, temos o alargamento das bases sociais do sistema político, com a incorporação de setores cada vez mais amplos da sociedade.

Na época em que Stuart Mill viveu, boa parte dos esforços necessários para tornar efetivos os canais de competição política já havia produzido os seus frutos. A questão candente que desafiava a imaginação das elites políticas inglesas era a incorporação "pacífica" da massa de trabalhadores depauperados pela industrialização, que batiam às portas do sistema político.

Um novo liberalismo. A concepção individualista, num certo sentido, coloca o homem antes da sociedade e vê nesta última, principalmente na sua instância política, um elemento de artificialidade que não aparece na concepção organicista. Para esta perspectiva de análise, as ações humanas são auto-referenciadas e importam em si mesmas. Por isso, podemos dizer que esta concepção inverte a relação indivíduo-grupo, fazendo do último um reflexo do primeiro. O agregado social é, assim, o produto de uma espécie de soma vetorial das atividades, interesses e impulsos dos indivíduos que o compõem.

A obra de Mill conduz a teoria liberal da perspectiva descendente para a ascendente. Por este motivo Stuart Mill é por muitos considerado o grande representante do pensamento liberal democrático do século passado. Com Mill, o liberalismo despe-se de seu ranço conservador, defensor do voto censitário e da cidadania restrita, para incorporar em sua agenda todo um elenco de reformas que vão desde o voto universal até a emancipação da mulher . Na obra de Mill podemos acompanhar um esforço articulado e coerente para enquadrar e responder as demandas do movimento operário inglês.

De certa forma, a obra de Mill pode ser tomada como um compromisso entre o pensamento liberal e os ideais democráticos do século XIX. O fundamento deste compromisso está no reconhecimento de que a participação política não é e não pode ser encarada como um privilégio de poucos. E está também na aceitação de que nas condições modernas, o trato da coisa pública diz respeito a todos. Daí a preocupação de Mill em dotar o estado liberal de mecanismos capazes de institucionalizar esta participação ampliada.

Em Mill, não se trata apenas de acomodar-se ao inevitável. A incorporação dos segmentos populares é para ele a única via possível para salvar a liberdade inglesa de ser presa dos interesses egoístas da próspera classe média. O voto para Mill não é um direito natural. Antes, o voto é uma forma de poder, que deve ser estendido aos trabalhadores para que estes possam defender seus direitos e interesses no mais puro sentido que o liberalismo atribui a esta expressão. Entretanto precisamos nos acautelar não vermos em Stuart Mill um pensador democrata radical. Para ele, a tirania da maioria é tão odiosa quanto a da minoria. Isto porque ambas levariam à elaboração de leis baseadas em interesses classistas. Um bom sistema representativo é aquele que não permite "que qualquer interesse seccional se torne forte o suficiente para prevalecer contra a verdade, a justiça e todos os outros interesses seccionais juntos".

Tendo em vista alcançar estes resultados, Mill propõe duas medidas. (1) Em primeiro lugar, a adoção do sistema eleitoral proporcional, que garantiria a representação das minorias, mesmo quando estas se encontrassem dispersas em vários distritos, não representando a maioria em nenhum deles. (2) Em segundo lugar, a adoção do voto plural (a ainda que contados com pesos diferentes, dando às elites culturais o papel de fiel da balança entre os interesses das classes proprietárias e o dos trabalhadores assalariados).

Indivíduo e liberdade. Para compreendermos o valor que Mill atribui à democracia, é necessário observar com mais atenção a sua concepção de sociedade e indivíduo. A posição de Stuart Mill sobre estas questões tem raízes na concepção utilitarista defendida por Bentham e James Mill. Para estes dois autores, a realidade da economia de mercado constitui-se num paradigma teórico para a construção de seus modelos de sociedade e de indivíduo. Desta forma, a natureza humana parece-lhes essencialmente pragmática. O homem é um maximizador do prazer e um minimizador do sofrimento. A sociedade é o agregado de consciências autocentradas e independentes, cada qual buscando realizar seus desejos e impulsos. O bem-estar pode ser calculado para qualquer homem subtraindo-se o montante de seu sofrimento do valor bruto de seu prazer. Prazer, dor, felicidade e ventura são aqui tomados em um sentido quantitativo radical. E possível assim se chegar a um cálculo da felicidade da sociedade, obtido através do somatório dos resultados destas operações para cada indivíduo. O bom governo será aquele capaz de garantir o maior volume de felicidade líquida para o maior número de cidadãos . Para cada ação ou questão política, é sempre possível aplicar este raciocínio para avaliar a "utilidade" de seus resultados.

Stuart Mill retém em sua obra o princípio básico do utilitarismo, que vê no bem-estar assegurado o critério último para a avaliação de qualquer governo ou sociedade. Entretanto, estabelece distinção fundamental que o levará a trilhar caminhos opostos daqueles advogados por seus mestres. Para Stuart Mill, a primeira dificuldade está em se tomar a felicidade como algo passível de mensuração puramente quantitativa. Na avaliação desta dimensão da natureza humana intervém um elemento qualitativo que lhe é intrínseco. É justamente esta a porta por onde Mill introduz uma alteração radical na concepção sobre a natureza do homem. O Homem é um ser capaz de desenvolver suas capacidades. E, ademais, faz parte de sua essência a necessidade deste desenvolvimento.

Temos assim um modelo progressivo da natureza humana e um critério novo para a aferição de um bom governo: "O grau em que ele tende a aumentar a soma das boas qualidades dos governados, coletiva e individualmente". E aqui funda-se a utilidade da democracia e da liberdade. O governo democrático é melhor porque nele encontramos as condições que favorecem o desenvolvimento das capacidades de cada cidadão. "O efeito revigorante da liberdade só atinge seu ponto máximo quando o indivíduo está, ou se encontra em vias de estar, de posse dos plenos privilégios de cidadão."

Foi na defesa desta liberdade que Mill escreveu On liberty. O argumento central desta obra assenta-se numa proposição bastante simples: O elogio da diversidade e do conflito como forças matrizes por excelência da reforma e do desenvolvimento social. Com a perspicácia que lhe é característica, Mill aponta para o fato de que uma sociedade livre, na medida mesmo em que propicia o choque das opiniões e o confronto das idéias e propostas, cria condições ímpares para que "a justiça e a verdade" subsistam. Desta forma, garante-se, através do conflito, O progresso e a auto-reforma da sociedade. Em sociedades não livres, a reforma e o desenvolvimento social só podem aparecer como fruto do acaso ou de esforços intermitentes levados a cabo por déspotas mais ou menos esclarecidos. Para Mill, a liberdade não é um direito natural. É antes de mais nada o substrato necessário para o desenvolvimento de toda a humanidade. E o é principalmente porque ela torna possível a manifestação da diversidade, a qual, por sua vez, é o ingrediente necessário para se alcançar a verdade.

Na obra de Mill encontramos a pré-história de duas noções muito caras à ciência política contemporânea: (1) a defesa do pluralismo e da diversidade societal contra as interferências do Estado e da opinião pública (esta última, a tirania da "opinião prevalecente", a pior, porque mais sistemática e cotidiana); (2) e a perspectiva de sistemas abertos, multipolares, onde a administração do dissenso predomine sobre a imposição de consensos amplos.

Marcos Katsumi Kay - N1

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

BRANDÃO, Gildo Marçal. Hegel: O Estado como Realização Histórica da Liberdade. In: WEFFORT, Francisco C. (org.) Os Clássicos da Política.

BRANDÃO, Gildo Marçal. Hegel: O Estado como Realização Histórica da Liberdade. In: WEFFORT, Francisco C. (org.) Os Clássicos da Política. São Paulo, Editora Ática, 2004, vol. 2.
Estrutura: Hegel: o Estado como realização histórica da liberdade. Hegel e os Contratualistas. A questão da história. Particularidade: propriedade e liberdade. A liberdade concreta. De Maquiavel a Hegel. A reação a Hegel.
Resumo:

Do ponto de vista teórico, o Hegel da Filosofia do direito é o primeiro a fixar o conceito de sociedade civil como algo distinto e separado do Estado político, distinção que substitui, deslocando e subvertendo os seus conteúdos, tudo o que estes filósofos elaboraram através dos conceitos de estado de natureza e estado civil. A sociedade civil é definida como um sistema de carecimentos, estrutura de dependências recíprocas onde os indivíduos satisfazem as suas necessidades através do trabalho, da divisão do trabalho e da troca; e asseguram a defesa de suas liberdades, propriedades e interesses através da administração da justiça e das corporações. Trata-se da esfera dos interesses privados, econômico-corporativos e antagônicos entre si. A ela se contrapõe o Estado político, isto é, a esfera dos interesses públicos e universais, na qual aquelas contradições estão mediatizadas e superadas. O Estado não é, assim, expressão ou reflexo do antagonismo social, a própria demonstração prática de que a contradição é irreconciliável, mas é esta divisão superada, a unidade recomposta e reconciliada consigo mesma. A marca distintiva do Estado é esta unidade, que não é uma unidade qualquer, mas a unidade substancial que traz o indivíduo à sua realidade efetiva e corporifica a mais alta expressão da liberdade.

Deve-se chamar a atenção para o fato de que a sociedade civil hegeliana não engloba apenas a esfera das relações econômicas e a formação das classes, mas também a administração da justiça e o ordenamento administrativo e corporativo. Por outro lado, também a esfera pré-estatal é historicamente produzida, não um estado de natureza. Família e sociedade civil - as esferas que aparentemente estão fora e são anteriores ao Estado - na verdade só existem e se desenvolvem no Estado. Não há história fora do Estado. Não há nada fora da história.

Hegel e os Contratualistas. A elaboração hegeliana deve ser entendida tendo como pano de fundo o que vem antes dela, o que prossegue e contra o que se insurge. Sua teoria política é, de certo ponto de vista, o momento mais alto a que chegou o jusnaturalismo - o movimento teórico-político que engloba Hobbes e Locke, Spinoza e Rousseau, mas também Kant e Fichte -, tradição que modifica radicalmente, subvertendo os seus conceitos, criando novos, construindo um método e uma teoria global sem precedentes.

A teoria contratualista faz do indivíduo o alfa e o ômega da vida social. Toma o Estado como algo derivado, uma criação artificial, produto de um pacto, ação voluntária pela qual os indivíduos abdicam de sua liberdade originária em benefício de um terceiro, dando vida a um corpo político soberano que lhes garanta vida, liberdade e bens. Tarefa precípua do Estado é, então, garantir a liberdade individual e a propriedade privada. Por essa via, entretanto, a teoria contratualista é incapaz de explicar por que o Estado pode exigir do indivíduo o sacrifício da própria vida em benefício da preservação e do desenvolvimento do todo. Ao fazer do interesse particular do indivíduo o conteúdo do Estado, ela está, segundo Hegel, confundindo Estado e sociedade civil. Na verdade, o indivíduo sequer escolhe se participa ou não do Estado - é constituído como tal por ele. A relação entre os dois é, portanto, de outra natureza: substantiva e não formal, efetiva e não optativa. Somente como membro do Estado é que o indivíduo ascende à sua "objetividade, verdade e moralidade".

A inversão hegeliana é completa. "A associação como tal é o verdadeiro conteúdo e o verdadeiro fim, o destino dos indivíduos é viver uma vida universal". O Estado é a totalidade orgânica de um povo, não um agregado, um mecanismo, um somatório de vontades arbitrárias e inessenciais. A força associativa do conjunto, da relação do todo com as partes, se revela precisamente na guerra.

A questão da história. Característico dos jusnaturalistas é a contraposição da história entre princípios supra-históricos e a própria história. É por isso, diz Hegel, que eles procuram estabelecer como o Estado deveria ser, em vez de tentar compreendê-lo como ele é. As conseqüências são dramáticas. Ao construírem a teoria do contrato, eles pressupõem a existência - lógica ou histórica - de indivíduos livres e vivendo isolados e separados uns dos outros, fora e antes da sociedade e da história. Criam uma ficção. Esta metodologia, que procura apreender formas objetivas da existência histórica por uma via apriorística e abstrata, apenas cristaliza antíteses históricas em antíteses teóricas, sem resolvê-las. Ao tomarem a natureza humana fora de seu desenvolvimento histórico, acabam por opor às manifestações concretas da história dos homens um conjunto de faculdades, uma possibilidade abstrata, um mero dever ser a partir do qual pretendem refazer o estado de coisas existente. Nada mais distante de Hegel, cuja ambição era não elaborar uma filosofia da história, se por esta se entende uma filosofia sobre a história, mas a de construir a filosofia enquanto expressão especulativa da própria história. Tendo, neste sentido, verdadeiro horror a qualquer tentativa de teorizar um ideal de Estado ou um Estado ideal, a partir do qual a realidade pudesse ser medida e "criticada".

Particularidade: propriedade e liberdade. Influenciado pela Revolução Francesa, o jovem Hegel um dia acreditou na possibilidade de restauração da polis grega. Esta ilusão foi abandonada por volta dos trinta anos, a partir da qual Hegel descobre o que considera a marca distintiva da modernidade. Numa interpretação da República platônica, ele recusa-se a analisá-la como uma utopia, um modelo normativo ou um ideal que nada tem a ver com a realidade concreta. Considera A República como a verdade do mundo grego, o sentido para o qual este tendia e teria alcançado, não tivesse sido bloqueado pelo aparecimento da particularidade. A Cidade-Estado não pode suportar o surgimento da propriedade privada e da individualidade.

É este mal que é portador de futuro. A liberdade subjetiva, a autonomia da pessoa privada só aparecem interiormente com o cristianismo e exteriormente com o mundo romano. Este, no entanto, só foi capaz de pôr uma universalidade abstrata diante de uma pessoa também abstrata. Apenas na modernidade é que a particularidade se emancipa, toma consciência de si e se universaliza. Característico do Estado moderno é ser justamente um todo que subsiste na e através da mais extrema autonomização das partes.

Deve-se chamar a atenção para o fato de que esta concepção não escapou de ser chamada de totalitária, porque organicista. O pressuposto do argumento é que o fundamento epistemológico e ontológico da democracia não pode não ser o individualismo e a visão hegeliana, ao contrário, compartilha com qualquer organicismo o princípio aristotélico do todo que é maior do que a soma das partes. O problema desta interpretação é que pouco há de comum entre uma totalidade que existe quando e porque desenvolve todas as determinações que é capaz de conter, que procede não por aniquilação e eliminação das partes mas por sua diversificação e autonomização, e uma totalidade na qual as determinações e todas as diferenciações desaparecem.

Liberdade concreta. Aristotelicamente, é livre quem é por si mesmo e não por outro. Quem é dependente não é livre. Em suas Lições sobre a filosofia da universal, Hegel diz que "o Oriente sabia e sabe que somente um é livre, o mundo grego e romano, que alguns são livres, o mundo germânico sabe que todos são livres". Esta teoria da liberdade que se realiza historicamente está na base de sua teoria das formas de governo, que retoma a classificação de Montesquieu: "Em conseqüência, diz, a primeira forma que temos na história universal é o despotismo, a segunda, a democracia e aristocracia, a terceira, a monarquia". Para chegar a tais resultados, foi preciso elaborar um novo conceito de liberdade.

Como tudo em Hegel, não existe liberdade em geral. O conceito desta supõe sempre o seu contrário, no caso concreto, a existência de determinada coerção, variável historicamente. No sentido de Locke, ela se define pela ausência de qualquer constrição e, em seguida, pelo limite que outra liberdade me opõe. Rousseau avança para além dessa liberdade meramente negativa, em direção à liberdade positiva. Ambas, especialmente a primeira, se traduzem num sistema de direitos (civis, mas, em seguida, também políticos e sociais), garantidos por lei e pelo ordenamento estatal, direitos estes que estão historicamente, em maior ou menor grau, à disposição dos cidadãos. A segunda configura especificamente essa participação política nos negócios do Estado por parte dos indivíduos que têm por meta fins particulares e os negócios da sociedade civil.

Denunciando suas limitações, a concepção hegeliana de liberdade não elimina mas incorpora tais determinações. Ela considera que a Revolução Francesa colocou mas não resolveu o problema da realização política da liberdade. Considerando-a como um estado em que o homem pode se realizar como homem e construir um mundo adequado ao seu conceito, a concepção hegeliana de liberdade concreta exige que a liberdade se eleve à consciência da necessidade - vale dizer, dos nexos objetivos e da legalidade própria da natureza e da história, das leis de seu desenvolvimento objetivo -, à compreensão do que a realidade é, porque o que é, é a Razão.

De Maquiavel a Hegel. Com Hegel, portanto, completa-se o movimento iniciado por Maquiavel, voltado para apreender o Estado tal como ele é, uma realidade histórica, inteiramente mundana, produzida pela ação dos homens. Nesse foram definitivamente arquivadas as teorias da origem natural ou divina do poder político; afirmada a absoluta soberania e excelência do Estado; a especificidade da política diante da religião, da moral e de qualquer outra ideologia; reconhecida a modernidade e centralidade da questão da liberdade e, sobretudo - pois é esta a principal contribuição de Hegel -, resolvido o Estado num processo histórico, inteiramente imanente.

A reação a Hegel. A preocupação de Hegel não é, como vimos, apenas construir uma teoria do Estado legítimo, uma nova justificação racional do Estado. Ele avança, além disso, para atribuir ao Estado as características da própria razão. Ora, ao considerá-lo "a realidade em ato da idéia ética", o "racional em si e para si", o absoluto no qual a liberdade encontra sua supre ma significação - ele despertou a suspeita generalizada de que estaria muito prosaicamente justificando o Estado existente.

Tentativa mais ousada e polêmica foi aquela realizada por Georg Lukács, num livro escrito na década de 30 sobre O jovem Hegel e os problemas da sociedade capitalista. Lukács não nega a progressiva conservadorização da teoria hegeliana, inegável à simples comparação entre o lugar e a função que a Revolução Francesa ocupa na Fenomenologia do espírito e na seca arquitetura da Filosofia do direito, que é a culminação do sistema hegeliano. No primeiro, a Revolução Francesa está no início do processo de instauração da modernidade; no segundo, no seu fim. Nem reduz esta mudança a uma mera inflexão tática, conjuntural. Ao contrário, tal deslocamento repercute na própria estrutura da teoria: na Fenomenologia, a coruja de Minerva não alça vôo apenas ao cair da noite, ela também anunciava o amanhecer.

A novidade da análise, entretanto, é que é precisamente este retrocesso, esta reconciliação com a realidade, que permite a Hegel perceber e formular com clareza, acuidade e amplitude até então inigualáveis os problemas da sociedade européia de seu tempo. Em outros termos, tal reconciliação é a condição de possibilidade sem a qual Hegel não teria sido o primeiro filósofo a se colocar "do ponto de vista da economia política moderna", conforme o Marx dos Manuscritos de 1844, que Lukács desenvolve. Assim, Hegel é não só o filósofo que mais profunda e adequada cornpreensão tem na Alemanha da essência da Revolução Francesa e do período napoleônico, mas, além disso, o único pensador alemão do período que se ocupou seriamente dos problemas da Revolução Industrial ocorrida na Inglaterra, e o único que então pôs os problemas da economia clássica inglesa em relação com os problemas da filosofia da dialética.

Marcos Katsumi Kay - N1

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

ANDRADE, Regis de Castro. Kant: A Liberdade, O Indivíduo e a República.

ANDRADE, Regis de Castro. Kant: A Liberdade, O Indivíduo e a República. In: WEFFORT, Francisco C. (org.) Os Clássicos da Política. São Paulo, Editora Ática, 2004, vol. 2.
Estrutura: A filosofia da moral e a dignidade do indivíduo. O imperativo categórico. A liberdade externa e a autonomia. A doutrina do direito. Direito privado e direito público. O direito privado: a fundamentação jurídica do meu e do teu. A constituição da sociedade civil e o direito público. A negação do direito de resistência ou de revolução. o Estado liberal. A cidadania. A república. A filosofia da história como progresso da humanidade. A dialética kantiana da história. A confederação dos Estados livres e a paz.
Resumo:

A filosofia da moral e a dignidade do indivíduo. O conhecimento racional, diz Kant, versa sobre objetos ou sobre suas próprias leis. Há dois gêneros de objetos: a natureza, que é o objeto da física, e a liberdade, que é o objeto da filosofia moral ou ética. O conhecimento das leis da própria razão, por sua vez, constitui a lógica; esse conhecimento é puramente formal, isto é, independente da experiência. Toda a filosofia kantiana do direito, da política e da história repousa sobre a concepção dos homens como seres morais: eles devem organizar-se segundo o direito, adotar a forma republicana de governo e estabelecer a paz internacional, porque tais são comandos a priori da razão, e não porque sejam úteis.

O imperativo categórico. A norma moral tem a forma de um imperativo categórico. O comando nela contido assinala a relação entre um dever ser que a razão define objetivamente e os móveis humanos, os quais, por sua constituição subjetiva, não conduzem necessariamente à realização daquela finalidade moral. O comando moral é categórico porque as ações a ele conformes são objetivamente necessárias, independentemente da sua finalidade material ou substantiva particular. Modelos de democracia. Desempenho e padrões de governo em 36 países Assim se compreende a fórmula kantiana da Lei Universal, ou imperativo categórico: "Aja sempre em conformidade com o princípio subjetivo, tal que, para você, ele deva ao mesmo tempo transformar-se em lei universal". Sendo universais, as normas morais que nos conduzem são elaboradas por nós mesmos enquanto seres racionais. Ou seja: a humanidade, e cada um de nós, é um fim em si mesmo. Se o agente racional é verdadeiramente um fim em si mesmo, ele deve ser o autor das leis que observa, e é isso que constitui seu supremo valor. Ora, obedecer às suas próprias leis é ser livre.

A liberdade externa e a autonomia. A liberdade, em Kant, é a liberdade de agir segundo leis. As leis descrevem relações de causa e efeito. Portanto os homens são livres quando causados a agir. Nos seres racionais a causa das ações é o seu próprio arbítrio. Num primeiro sentido, portanto, a liberdade é a ausência de determinações externas do comportamento. Esse é o conceito negativo de liberdade. A liberdade tem leis; e se essas leis não são externamente impostas, só podem ser auto-impostas. Esse é o conceito positivo de liberdade; ele designa a liberdade como autonomia, ou a propriedade dos seres racionais de legislarem para si próprios.

A doutrina do direito. Normalmente, o direito é "o corpo daquelas leis susceptíveis de tornar-se externas, isto é, externamente promulgadas". Toda e qualquer lei impõe deveres; mas o cumprimento desses deveres pode ou não ser coativamente exigido. No primeiro caso, trata-se de leis morais; no segundo, de normas jurídicas. Nesse argumento, a moral abrange o direito. O fundamento de ambos os tipos de leis é a autonomia da vontade, e a referência a esse fundamento moral é constitutiva do direito. As normas jurídicas são universais; elas obrigam a todos, independentemente de condições de nascimento, riqueza etc. Quem viola a liberdade de outrem ofende a todos os demais, e por todos será coagido a conformar-se à lei e compensar os danos causados. A coerção é parte integrante do direito; a liberdade, paradoxalmente, requer a coerção. Duas são as condições para o uso justo da coerção. A primeira é a seguinte: "Se um certo exercício da liberdade é um obstáculo à liberdade [de outrem] segundo as leis universais [isto é, se é injusto], então o uso da coerção para opor-se a ele [...] é justo". A segunda decorre da universalidade das leis violadas: a coerção só é justa quando exercida pela vontade geral do povo unido numa sociedade civil.

Direito privado e direito público. Como jusnaturalista, Kant distingue entre a lei natural e a lei positiva (segundo a fonte) e entre direitos inatos e adquiridos (segundo sua exigibilidade dependa ou não do seu acolhimento na lei positiva). As leis naturais se deduzem de princípios a priori; elas não requerem promulgação pública e constituem o direito privado. As segundas expressam a vontade do legislador. São promulgadas e constituem o direito público. O direito público, ou positivo, não é idêntico ao direito natural; mas é necessário pressupor a existência de um nexo sistemático entre eles, através do qual o princípio comum da justiça como liberdade opera, em grau maior ou menor, na esfera do direito positivo e constitui, dessa forma, a sua juridicidade. A distinção kantiana entre direito privado e público ressalta a existência, no estado de natureza, de um certo tipo de sociabilidade natural derivada da racionalidade humana: "O estado de natureza não é oposto e contrastado ao estado de sociedade, mas à sociedade civil, porque no estado de natureza pode haver uma sociedade, mas não uma sociedade civil".

A constituicão da sociedade civil e o direito público. O direito público é o direito positivo, emanado do legislador para a regulação dos negócios privados (justiça comutativa) e das relações entre a autoridade pública e os cidadãos (justiça distributiva). Os indivíduos que se relacionam em conformidade com leis publicamente promulgadas constituem uma sociedade civil (status civilis); vista como um todo em relação aos membros individuais, a sociedade civil se denomina Estado (civitas). Os termos "sociedade civil" e "Estado", portanto, referem-se ao mesmo objeto, considerado de pontos de vista distintos. A transição à sociedade civil é um dever universal e objetivo, porque decorre de uma idéia a priori da razão. É certo que os homens no estado de natureza tendem a hostilizar-se; mas a passagem de um estado a outro não obedece a motivos de utilidade. Trata-se de um imperativo moral: o estado civil é a realização da idéia de liberdade tanto no sentido negativo como positivo. Pressupondo-se necessariamente a juridicidade provisória do estado natural, o ato pelo qual se "constitui" o Estado é o contrato originário, concebido como idéia a priori da razão: sem essa idéia, não se poderia pensar um legislador encarregado de zelar pelo bem comum, nem cidadãos que se submetem voluntariamente às leis vigentes.

A negação do direito de resistência ou de revolução. Os cidadãos não podem opor-se aos seus governantes em qualquer hipótese. A teoria kantiana da obrigação política, vinculada à sua concepção apriorística do contrato, estabelece o dever de obediência às leis vigentes, ainda que elas sejam injustas. "A mais leve tentativa [de rebelar-se contra o chefe do Estado] é alta traição, e a um traidor dessa espécie não pode ser aplicada pena menor que a morte". Ali, ele admite que o destronamento do monarca pode ser escusável, embora não permissível: "O povo poderia ter pelo menos alguma desculpa por forçar [o destronamento] invocando o direito de necessidade (casus necessitatis)" .

O Estado liberal. Kant é um teórico do liberalismo, concebe o Estado como um instrumento (necessário) da liberdade de sujeitos individuais. A autonomia deduz-se da liberdade e a preserva e garante. A liberdade como não impedimento no estado de natureza é precária, e requer o exercício da autonomia. A reconciliação dos homens consigo mesmos enquanto seres livres necessita a promulgação pública das leis universais, que manifesta a disposição de todos e de cada um de viver em liberdade. Nega-se às autoridades públicas o dever e o direito de promover a felicidade, o bem-estar ou, de modo geral, os objetivos materiais da vida individual social. A legislação deve assentar sobre princípios universais e estáveis , ao passo que as preferências subjetivas são variáveis de indivíduo a indivíduo e cambiantes no tempo. A ninguém é dado o direito de prescrever a outrem a receita da sua felicidade. Ao Estado incumbe promover o bem público; o bem público é a manutenção da juridicidade das relações interpessoais. "As leis do direito público referem-se apenas à forma jurídica da convivência entre os homens".

A cidadania. Quando unidos para legislar, os membros da sociedade civil são denominados cidadãos. São características dos cidadãos a autonomia (capacidade de conduzir-se segundo seu próprio arbítrio), a igualdade perante a lei (não se diferenciam entre si quanto ao nascimento ou fortuna) e a independência (capacidade de sustentar-se a si próprios). Essa concepção de cidadania tem por base os direitos inatos à liberdade e à igualdade. Nenhuma Constituição poderia autorizar a escravidão, por ser ela absolutamente incompatível com os princípios da justiça. Estabelecida a sociedade segundo o direito, nem todos os seus membros qualificam-se para a atuação política através do voto, ou seja, para a cidadania ativa . Não se qualificam os que vivem sob a proteção ou sob as ordens de outrem, como os empregados, os menores e as mulheres; esses são cidadãos passivos. Por igualdade deve-se entender a igualdade de oportunidades. "As leis vigentes", diz Kant, "não podem ser incompatíveis com as leis naturais da liberdade e da igualdade que corresponde a essa igualdade, segundo as quais todos podem elevar-se da situação de cidadãos passivos ao de cidadãos ativos".

A república. A melhor forma de Estado é a república. Idéia objetivamente necessária e universalmente válida; seus atributos são deduzidos de princípios a priori. A república é o "espírito do contrato originário", pelo qual os governantes se obrigam a aproximar-se, praticamente, da idéia de uma Constituição política legítima. Na Constituição legítima, ou republicana (a) a lei é autônoma, isto é, manifesta a vontade do povo, e não a vontade de indivíduos ou grupos particulares e (b) cada pessoa tem a posse do que é seu peremptoriamente, visto que pode valer-se da coação pública para garantir seus direitos. O princípio da Constituição republicana é a liberdade; nela se conjugam a soberania popular (a vontade legislativa autônoma) e a soberania do indivíduo na esfera juridicamente limitada dos seus interesses e valores particulares.

A república é a melhor Constituição do ponto de vista do modo de funcionamento da sociedade, independentemente de quem governa. O Estado pode ser monárquico, aristocrático ou democrático; o que importa é que seja republicano. A república opõe-se ao despotismo, não à monarquia. O princípio político do republicanismo é a separação entre os poderes executivo (a administração) e legislativo. No despotismo, o soberano executa as leis que ele mesmo decretou.

Essa questão requer alguma elaboração. Como se observou acima, o bem do Estado como união do povo segundo suas próprias leis (civitas) - por oposição ao bem individual - é sua autonomia com respeito a todo e qualquer interesse particular ou poder externo. Em outras palavras, para que se preserve a liberdade política, é necessário que a esfera pública mantenha-se rigorosamente imune a influências particulares ou privadas. Para que esse supremo valor político (que é ao mesmo tempo moral e jurídico) se realize, é imperativo que ele assuma a forma que a razão a priori lhe recomenda.

O legislativo (a autoridade soberana) emite puros comandos universais, ou leis. O governante (rex, princeps) , ele mesmo submetido às leis, não pode legislar; ele executa os comandos gerais em situações cambiantes, através de decretos e regulamentos. O judiciário aplica a lei a casos individuais após julgamento pelo júri. A dedução é silogística: uma premissa maior, uma menor e a conclusão. Essa arquitetura-polítíca promove a cooperação entre os poderes - pode-se supor que Kant aluda aqui a ganhos de eficiência no desempenho estatal - e impede que um poder usurpe as atribuições do outro e instaure o despotismo.

A filosofia da história como progresso da humanidade. Kant procura demonstrar que a humanidade progride e que o progresso humano só pode ser um aperfeiçoamento moral. A história universal é a história natural do progresso da razão. A primeira tese já deixa entrever o percurso e o resultado do argumento: "Todas as capacidades naturais de uma criatura são destinadas a desenvolver-se completamente até a sua finalidade natural". Trata-se de um processo inevitável. A segunda tese sustenta que o desenvolvimento das faculdades racionais se observa A terceira tese apresenta o progresso como racionalização do mundo, e em particular das relações sociais e políticas, tal como indicam as teses subseqüentes. A história humana tende para o "Estado perfeitamente constituído".

A dialética kantiana da história. A política, como atividade de elaboração e aperfeiçoamento constitucional, é um processo de racionalização das relações entre os homens e entre os Estados. Mas o progresso não é um processo rápido, nem indolor. Ele é lento, enganoso e sobretudo contraditório. A humanidade avança por efeito da contraditoriedade das opiniões, dos interesses particulares e dos interesses nacionais. As opiniões devem entrechocar-se livremente. O povo rebelado, sob a liderança de políticos ilustrados, pode derrubar um tirano, mas não altera seu nível cultural. O verdadeiro caminho é a liberdade, a liberdade de opinião e de imprensa. O soberano não é divino, e pode errar; é necessário, portanto, conceder aos cidadãos, com o beneplácito do próprio soberano, o direito de emitir publicamente suas opiniões e a liberdade de escrever. O alargamento do debate público é condição do progresso. Outra mola do progresso é o conflito de interesses individuais e de nacionais. O progresso aparece como resultante não intencional da interação humana; uma "finalidade secreta da natureza". O antagonismo kantiano não é incompatível com a sociabilidade natural nem com a sociedade civil, ele atribui ao antagonismo humano uma função positiva: a competição e a guerra não se relacionam à justiça e à paz como termos imediatamente antitéticos, mas como mediações do progresso. Não se trata de celebrar o interesse particular enquanto tal, mas de reconciliar os particularismos em choque com a idéia de uma sociedade justa.

A confederação dos Estados livres e a paz. A história se desenrola segundo a lei natural do progresso moral; mas a intervenção política deliberada segundo a razão faz-se necessária para que se evitem as guerras. Embora definindo a paz como um princípio moral a priori - "a razão moral prática dentro de nós comanda irresistivelmente: não haverá guerra" - a cessação efetiva das hostilidades requer um acordo real, e não simplesmente ideal, entre as potências. O princípio da paz deve materializar-se efetivamente numa "confederação dos Estados livres", segundo a idéia de uma "Liga das Nações para a paz". Enfim, a Liga das Nações não constitui um soberano por sobre os Estados nacionais; por isso, ele pode ser desfeito, e deve ser refeito de tempos em tempos.

A relativa materialização da idéia da paz aparece também na reflexão sobre os fatores que contribuem para o fim das guerras. por um lado, a paz depende de que em cada país os povos tenham-se organizado em sociedade jurídica. Se o pacto originário em cada país cria a república, o pacto que constitui a Liga das Nações pressupõe a república como regime político nos países contratantes. Ao povo não interessa a guerra e, quando pode manifestar-se livremente sobre a questão, declara-se contra ela. Kant associa o processo da paz ao longo e contraditório processo natural de constituição do Estado segundo a justiça. O dever moral é inescapável, não se pode ao mesmo tempo dizer que não é possível cumpri-lo: não há, portanto, conflito entre moral e política. Mas esses dois conceitos não são idênticos. A moral refere-se à doutrina teórica do direito; a política, à doutrina prática do direito. A política, orientando-se pelos mandamentos incondicionais da razão, envolve a escolha prudente dos meios adequados à consecução dos seus fins. Não é de esperar, nem é desejável, que "os reis filosofem e os filósofos reinem". Kant justifica sua posição dizendo que o poder corrompe o livre julgamento da razão. Pode-se acrescentar: os filósofos, em sua "pureza de pombas", corromperiam a necessária "astúcia das serpentes políticas". Idéia e realidade mantêm-se externas uma à outra.

Marcos Katsumi Kay - N1

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

KINZO, Maria D´Alva Gil. Burke: A Continuidade Contra a Ruptura.

KINZO, Maria D´Alva Gil. Burke: A Continuidade Contra a Ruptura. In: WEFFORT, Francisco C. (org.) Os Clássicos da Política. São Paulo, Editora Ática, 2004, vol. 2.
Estrutura: Burke: a continuidade contra a ruptura. Estado e sociedade. Constituição. Partidos.
Resumo:

Pensador e político inglês século XVIII, Edmund Burke é considerado o fundador do conservadorismo moderno. Tal atributo lhe foi imputado menos em função de sua brilhante carreira como parlamentar Whig (grupo partidário liberal), defensor das liberdades e do constitucionalismo dos ingleses, do que em virtude de suas formulações teóricas nascidas de seu ataque ferrenho aos revolucionários franceses e seus defensores na Inglaterra. Burke foi um pensador e político que nunca chegou a expor de modo sistemático suas idéias fundamentais. Estas emergem em meio a críticas e argumentos construídos na discussão acerca de questões concretas. Sua despreocupação com a sistematização de seu pensamento muito se deve ao fato de esposar uma visão hostil às abstrações.

Estado e Sociedade. Apesar de suas constantes referências pouco elogiosas ao pensamento abstrato, sua concepção sobre o Estado e a sociedade baseia-se em determinadas suposições sobre a natureza do Universo. Estado e sociedade fazem parte da ordem natural do Universo, que é uma criação divina. Segundo Burke, Deus criou um Universo ordenado, governado por leis eternas. Os homens são parte da natureza e estão sujeitos às suas leis. Estas leis eternas criam suas convenções e o imperativo de respeitá-las; regulam a dominação do homem pelo homem e controlam os direitos e obrigações dos governantes e governados. Os homens, por sua vez, dependem uns dos outros, e sua ação criativa e produtiva se desenvolve através da cooperação. Esta requer a definição de regras e a confiança mútua, o que é desenvolvido pelos homens, com o passar do tempo, através da interação, da acomodação mútua e da adaptação ao meio em que vivem. É desse modo que eles criam os princípios comuns que formam a base de uma sociedade estável.

Alguns pontos podem assim ser assinalados quanto à concepção de Burke acerca da natureza da sociedade e do Estado. (1) Em primeiro lugar, a sociedade tem uma essência moral, um sistema de mútuas expectativas, deveres e direitos sociais (e não naturais). (2) Em segundo lugar, vemos em Burke a idéia de que a sociedade é natural e de que os homens são por natureza sociais. E aqui cabe frisar que, para Burke, faz também parte da natureza das coisas a desigualdade. (A natureza é hierárquica; assim, uma sociedade ordenada é naturalmente dividida em estratos ou classes, de modo que a igualdade, tanto politíca, social como econômica, vai contra a natureza. Para Burke, a idéia de igualdade, esta "monstruosa ficção" apregoada pela Revolução Francesa, só serve para subverter a ordem e "para agravar e tornar mais amarga a desigualdade real que nunca pode ser eliminada e que a ordem da vida civil estabelece, tanto para benefício dos que têm de viver em uma condição humilde" como dos privilegiados.) (3) Em terceiro lugar, tem-se a idéia de que a sociedade não apenas tem origem divina mas também é divinamente ordenada. Segundo Burke, Deus nos legou o Estado, que é o meio necessário pelo qual nossa natureza é aperfeiçoada pela nossa virtude. Nesse sentido, a sociedade e o Estado possibilitam a realização das potencialidades humanas. (Pode-se identificar em Burke uma atitude de veneração ao Estado. Como afirma Burke, o Estado é "uma associação de toda ciência, de toda arte, de toda virtude e de toda perfeição [... ] uma associação não apenas os vivos, mas também entre os mortos e os que irão nascer". E isso nos leva a fazer alusão a um outro traço importante do pensamento de Burke: sua defesa da continuidade, sua reverência à tradição social e constitucional.)

Constituição. Uma constante no pensamento político de Burke, aparente tanto quando ele criticava o governo autocrático e a política colonial da Coroa como quando vilipendiava a Revolução Francesa, é a defesa da Constituição inglesa. Muito do seu sentido de conservação está referido ao que esta Constituição, a seu ver, representava ou personificava. (1) Em primeiro lugar, ela representava o pacto voluntário pelo qual uma sociedade é criada; e por se basear em um contrato voluntário inicial, ela é um imperativo para todos os indivíduos de uma sociedade. (2) Em segundo lugar, a Constituição inglesa personificava a tradição, e por isso deveria ser respeitada, porque esta representa a "progressiva experiência" do homem. (Afirma Burke: "Nossa Constituição é uma Constituição prescritiva; é uma Constituição cuja única autoridade consiste no fato de ter existido desde tempos imemoráveis". E as velhas instituições são as mais úteis, porque elas têm a sabedoria de Deus trabalhando através da experiência dos homens no curso de sua história.) (3) Em terceiro lugar, defender a Constituição inglesa significava defender o arranjo político instaurado a partir da Revolução de 1688, que garantia o equilíbrio entre Coroa e o Parlamento. Este arranjo político consagrava à monarquia a condição de instituição central da ordem política, ao personificar o objeto "natural" de obediência e reverência; mas atribuía ao Parlamento - corpo representativo dos diferentes interesses do reino - a condição de contrapeso da instituição monárquica, possibilitando o necessário controle sobre os abusos do poder real. (1) Assim, tem uma posição-chave nesse arranjo constitucional a Câmara dos Comuns, através da qual o povo está representado. (2) No entanto, o caráter representativo desta Câmara é para Burke muito mais virtual do que real, e tem pouco a ver com base eleitoral, mesmo porque Burke se opunha à extensão do sufrágio. (Segundo Burke, os interesses têm uma realidade objetiva e são o fruto de debate e deliberação entre homens de sabedoria e de virtude, não se confundindo com os meros desejos e opiniões do povo. É nesse sentido que Burke defendia o mandato independente na atividade de um representante. É portanto um direito e um dever dos membros do Parlamento seguir sua própria consciência e julgamento independente, ao invés de obedecer aos desejos ou instruções de sua base.)

Partidos. Finalmente cabe ressaltar a importância assinalada por Burke aos partidos políticos, peça essencial de um governo livre. Na verdade, Burke foi quem primeiro atribuiu um significado positivo ao termo partido político, dissociando-o do caráter faccioso originalmente atribuído aos agrupamentos políticos. Burke formulou a definição clássica de partido político: "Um grupo de homens unidos para a promoção, através de seu esforço conjunto, do interesse nacional, com base em algum princípio determinado com o qual todos concordam". Os partidos são instrumentos necessários para que planos comuns possam ser postos em prática "com todo o poder e autoridade do Estado".

Concebendo a sociedade como um organismo que encarnava a ordem moral de origem divina; fiel defensor da hierarquia social, das prescrições, dos direitos herdados e da continuidade histórica; crítico ferrenho das idéias e práticas da Revolução Francesa; Burke tornou-se o exponente máximo do pensamento conservador. Mas Burke foi também um vigoroso inimigo do grupo do rei Jorge III, crítico contumaz do governo autocrático e do imperialismo britânico em sua forma vigente na América, Irlanda e Índia no século XVIII; defensor de uma economia de mercado, da tolerância religiosa e dos princípios liberais da Revolução Whig de 1688. Tais atributos é que deram a Burke o título de constitucionalista liberal. Um liberal conservador, esta seria a melhor denominação para Burke; e discutir sua concepção sobre representação política, sobre partidos e governo partidário, ajuda-nos a conhecer os mecanismos de um regime parlamentar.

Marcos Katsumi Kay - N1

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

LIMONGI, Fernando Papaterra. O Federalista: remédios republicanos para males republicanos.

LIMONGI, Fernando Papaterra. O Federalista: remédios republicanos para males republicanos. In: WEFFORT, Francisco C. (org.) Os Clássicos da Política. São Paulo, Editora Ática, 2004, vol. 1.
Estrutura: O moderno federalismo. A separação dos poderes e a natureza humana. As repúblicas e as facções.
Resumo:

Obra conjunta de três autores, Alexander Hamilton, James Madison e John Jay, "O Federalista" explicita a teoria política a fundamentar o texto constitucional. O desafio teórico enfrentado por "O Federalista" era o de desmentir os dogmas arraigados de uma longa tradição. Tratava-se de demonstrar que o espírito comercial da época não impedia a constituição de governos populares e que estes dependiam exclusivamente da virtude do povo ou precisavam permanecer confinados a pequenos territórios. Um dos eixos estruturadores de "O Federalista" é o ataque à fraqueza do governo central instituído pelos Artigos da Confederação.

A experiência histórica demonstrava que as confederações " haviam sido levadas à ruína pelas razões apresentadas por Hamilton. Insistir na formação de uma Confederação seria desconhecer as lições da história e se prender às conjecturas de Montesquieu, que via nestas a possibilidade de compatibilizar as qualidades positivas dos Estados grandes - a força - com a dos pequenos - a liberdade.

Em "O Federalista" é possível notar a dificuldade em nomear a forma de governo proposta. A proposta não é estritamente nacional ou federal, mas uma composição de ambos os princípios. A distinção está no ponto assinalado por Hamilton; enquanto em uma confederação o governo central só se relaciona com Estados, cuja soberania interna permanece intacta, em uma Federação esta ação se estende aos indivíduos, fazendo com que convivam dois entes estatais de estatura diversa, com a órbita de ação dos Estados definida pela Constituição da União.

Trata-se de um recurso de argumentação utilizado para justificar a necessidade de criação do Estado - um tema ao qual "O Federalista" dedica, em verdade, pouca atenção - e do estabelecimento de controles bem definidos sobre os detentores do poder - o tema central de "O Federalista". Controlar os detentores do poder porque, como observa Madison, os homens não são governados por anjos, mas sim por outros homens, daí porque seja necessário controlá-los. "Ao constituir-se um governo - integrado por homens que terão autoridade sobre outros homens- a grande dificuldade está em que se deve primeiro habilitar o governante a controlar o governado e, depois, obrigá-lo a controlar-se a si mesmo." As estruturas internas do governo devem ser estabelecidas de tal forma que funcionem como uma defesa contra a tendência NATURAL de que o poder venha a se tornar arbitrário e tirânico.

Sendo o homem o que é, segue-se que todo aquele que detiver o poder em suas mãos tende a dele abusar. Estas reflexões, como é sabido, fundamentam a teoria da separação dos poderes, enunciada por este autor. Apesar de se apoiar expressamente em Montesquieu, a exposição de Madison da teoria da separação dos poderes contém especificidades que merecem ser notadas.

A defesa da aplicação do princípio da separação dos poderes encontra-se construída a partir de medidas constitucionais, garantias à autonomia dos diferentes ramos de poder, postos em relação um com os outros para que possam se controlar e frear mutuamente, referidas, em última análise, às características nada virtuosas dos homens, seus interesses e ambições pessoais por acumular poder. "A ambição será incentivada para enfrentar a ambição. Os interesses pessoais serão associados aos direitos constitucionais."

Caracterizadas como a principal ameaça à sorte dos governos populares, tidas corno forças negativas, no que segue os ensinamentos de uma sólida tradição, Madison inova ao defender que a sorte dos governos populares não depende de sua eliminação, mas sim de encontrar formas de neutralizar os seus efeitos. As causas das facções encontram-se semeadas na própria natureza humana, nascendo do livre desenvolvimento de suas faculdades. A diversidade de crenças, opiniões e de distribuição da propriedade decorre da liberdade dos homens de disporem de seus próprios direitos. Vale observar que entre estes direitos, Madison destaca o da propriedade, a principal fonte diferenciadora dos homens e, por isto mesmo, a fonte mais comum e duradoura das facções.

Proteger o direito de autodeterminação dos homens, isto é, proteger a sua liberdade, é o objetivo primordial dos governos, sua razão de ser. Neste ponto encontra-se explicitado o comprometimento de Madison com o credo liberal. Busca-se constituir um governo limitado e controlado para assegurar uma esfera própria para o livre desenvolvimento dos indivíduos, em especial de suas atividades econômicas.

Se as facções são inevitáveis, o problema passa a ser o de impedir que um dos diferentes interesses ou opiniões presentes na sociedade venha a controlar o poder com vistas à promoção única e exclusiva de seus objetivos. O princípio da decisão por maioria, regra fundamental dos governos populares, passa a representar uma ameaça aos direitos das facções minoritárias. À maioria aplica-se o princípio da tendência natural ao abuso do poder quando este não encontra freios diante de si. É o que naturalmente tende a acontecer nas democracias puras, onde poucas facções se defrontam e facilmente a majoritária controla todo o poder.

Madison está a advogar a causa de uma nova espécie de governo popular, uma república representativa, desconhecida na Antiguidade e por autores como Montesquieu e Rousseau que a tomam como modelo para suas reflexões. Estes autores constroem o seu modelo ideal de governo popular a partir dos exemplos de governos populares bem-sucedidos encontrados na história greco-romana. Por isto mesmo, os tempos modernos, onde a virtude havia sido substituída pelo apego ao bem-estar material, conspiravam contra a sorte desta forma de governo. Para Madison, ao contrário, esta história é uma sucessão de experiências fracassadas, dada a fraqueza congênita das democracias puras, oferecendo-lhe um modelo absolutamente negativo. Note-se, ainda, que as facções que tem em mente e que procura tornar compatíveis com o governo republicano - como pode ser observado pela leitura dos exemplos dados no correr do texto - são originárias do desenvolvimento de uma economia moderna. Madison afirma que este cenário não só é compatível com o governo popular, como também é mais apropriado para seu sucesso. A ruptura com a tradição é completa.

A distinção entre as repúblicas e as democracias puras traz vantagens à primeira em dois pontos capitais. Primeiro, fazendo com que as funções de governo sejam delegadas a um número menor de cidadãos e, segundo, aumentando a área e número de cidadãos sob a jurisdição de um único governo. À segunda característica distintiva das repúblicas deve-se a principal contribuição para evitar o mal das facções. Sob um território mais extenso e com um número maior de cidadãos cresce o número de interesses em conflito, de tal sorte que ou não existe um interesse que reuna a maioria dos cidadãos, ou, na pior das hipóteses, será difícil que se organize para agir. Ou seja, através da multiplicação das facções chega-se à sua neutralização recíproca, tornando impossível o controle exclusivo do poder por uma facção. Impede-se, assim, que qualquer interesse particular tenha condições de suprimir a liberdade.

Por outro lado, o preço desta solução pode ser a paralisia do governo, com o choque entre vários interesses a bloquear qualquer iniciativa das partes. Isto é, a solução para o mal das facções poderia acarretar um mal maior: o não-governo. Madison não chega a tocar nesta alternativa, o que poderia levar a pensar que este seria seu objetivo. Como um liberal, seria partidário de um governo mínimo, tudo mais ficando a cargo dos particulares e resolvendo-se pelas leis do mercado. Não é o caso. Madison não é um adepto de Adam Smith. À pergunta que lança no correr de sua argumentação, "Deverão as manufaturas nacionais ser incentivadas e em que grau através de restrições aos produtos estrangeiros?", não encontra resposta em um Estado mínimo. Em um não-governo, isto é, onde não fossem decididas quais as restrições aos produtos estrangeiros, uma das partes, os proprietários de terra, sairia ganhando. A solução vislumbrada por Madison não é nem o governo mínimo, nem o não-governo. Conforme afirma, a preocupação central da legislação moderna é a de fornecer os meios para a coordenação dos diferentes interesses em conflito. Levar à coordenação dos interesses é a marca distintiva das repúblicas por oposição à violência do conflito entre facções características das democracias populares. Ante o bloqueio mútuo das partes, a coordenação aparece como a única alternativa para decisão dos conflitos, o interesse geral se impondo como a única alternativa.

Marcos Katsumi Kay - N1

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

ALBUQUERQUE, José Augusto Guilhon. Montesquieu: sociedade e poder.

ALBUQUERQUE, José Augusto Guilhon. Montesquieu: sociedade e poder In: WEFFORT, Francisco C. (org.) Os Clássicos da Política. São Paulo, Editora Ática, 2004, vol. 1.
Estrutura: O conceito de lei. Os três governos. o conceito de lei. Os três governos. Os três poderes.
Resumo:

Sua preocupação central foi a de compreender as razões da decadência das monarquias, os conflitos intensos que minaram sua estabilidade, e também os mecanismos que garantiram, por tantos séculos, sua estabilidade, e que Montesquieu identifica na noção de moderação. A moderação é a pedra de toque do funcionamento estável dos governos, e é preciso encontrar os mecanismos que a produziram nos regimes do passado e do presente para propor um regime ideal para o futuro.

Até Montesquieu, a noção de Lei compreendia três dimensões essencialmente ligadas à idéia de lei de Deus. As leis exprimiam uma certa ordem natural, resultante da vontade de Deus. Elas exprimiam também um dever ser, na medida em que a ordem das coisas estava direcionada para uma finalidade divina. Finalmente, as leis tinham uma conotação de expressão da autoridade. As leis eram simultaneamente legítimas (porque expressão da autoridade), imutáveis (porque dentro da ordem das coisas) e ideais (porque visavam uma finalidade perfeita).

Montesquieu introduz o conceito de lei no início de sua obra fundamental. Definindo lei como "relações necessárias que derivam da natureza das coisas", Montesquieu estabelece uma ponte com as ciências empíricas, e particularmente com a física newtoniana. Com isso, ele rompe com a tradicional submissão da política à teologia. É possível encontrar uniformidades, constâncias na variação dos comportamentos e formas de organizar os homens, assim como é possível encontrá-las nas relações entre os corpos físicos. Tal como é possível estabelecer as leis que regem os corpos físicos a partir das relações entre massa e movimento, também as leis que regem os costumes e as instituições são relações que derivam da natureza das coisas. Com o conceito de lei, Montesquieu traz a política para fora do campo da teologia e da crônica, e a insere num campo propriamente teórico. Estabelece uma regra de imanência que incorpora a teoria política ao campo das ciências: as instituições políticas são regidas por leis que derivam das relações políticas. As leis que regem as instituições políticas, para Montesquieu, são relações entre as diversas classes em que se divide a população, as formas de organização econômica, as formas de distribuição do poder etc.

Mas o objeto de Montesquieu não são as leis que regem as relações entre os homens em geral, mas as leis positivas, isto é, as leis e instituições criadas pelos homens para reger as relações entre os homens. Montesquieu observa que, ao contrário dos outros seres, os homens têm a capacidade de se furtar às leis da razão (que deveriam reger suas relações), e além disso adotam leis escritas e costumes destinados a reger os comportamentos humanos. E têm também a capacidade de furtar-se igualmente às leis e instituições.

Os pensadores políticos que precedem Montesquieu (e Rousseau, que o sucede) são teóricos do Contrato Social (ou do Pacto), estão fundamentalmente preocupados com a natureza do poder político, e tendem a reduzir a questão da estabilidade do poder à sua natureza. Ao romper com o estado de natureza (onde a ameaça de guerra de todos contra todos põe em risco a sobrevivência da humanidade) o pacto que institui o estado de sociedade deve ser tal que garanta a estabilidade contra o risco de anarquia ou de despotismo.

Ele vai considerar duas dimensões do funcionamento político das instituições: a natureza e o princípio de governo. A natureza do governo diz respeito a quem detém o poder: na monarquia, um só governa, através de leis fixas e instituições; na república, governa o povo no todo ou em parte (repúblicas aristocráticas); no despotismo, governa a vontade de um só. As análises minuciosas de Montesquieu sobre as "leis relativas à natureza do governo" deixam claro que se trata de relações entre as instâncias de poder e a forma como o poder se distribui na sociedade, entre os diferentes grupos e classes da população.

O princípio de governo é a paixão que o move, é o modo de funcionamento dos governos, ou seja, como o poder é exercido. São três os princípios, cada um correspondendo em tese a um governo. Em tese, porque, segundo Montesquieu, ele não afirma que "toda república é virtuosa, mas sim que deveria sê-lo" para poder ser estável. Paixão que tem três modalidades: o princípio da monarquia é a honra; o da república é a virtude; e o do despotismo é o medo. A monarquia não precisa da virtude, e mesmo as paixões desonestas da nobreza a favorecem. Nessa curiosa conjunção entre o princípio e a natureza da monarquia fica claro que ela apenas repousa em instituições. É possível agora redefinir com nossas próprias palavras a natureza dos três governos: o despotismo é o governo da paixão; a república é o governo dos homens; a monarquia é o governo das instituições.

O despotismo está condenado à autofagia: ele leva necessariamente à desagregação ou às rebeliões. A república não tem princípio de moderação: ela depende de que os homens mais virtuosos contenham seus próprios apetites e contenham os demais. Na monarquia, são as instituições que contêm os impulsos da autoridade executiva e os apetites dos poderes intermediários. Na monarquia, em outras palavras, o poder está dividido e, portanto, o poder contraria o poder. Essa capacidade de conter o poder, que só outro poder possui, é a chave da moderação dos governos monárquicos.

Para Montesquieu, a república é o regime de um passado em que as cidades reuniam um pequeno grupo de homens moderados pela própria natureza das coisas: uma certa igualdade de riquezas e de costumes ditada pela escassez. Com o desenvolvimento do comércio, o crescimento das populações e o aumento e a diversificação. das riquezas ela se torna inviável: numa sociedade dividida em classes a virtude (cívica) não prospera. O despotismo seria a ameaça do futuro, na medida em que as monarquias européias aboliam os privilégios da nobreza, tornando absoluto o poder do executivo. Apenas a monarquia, isto é, o governo das instituições, seria o regime do presente. Deve ficar claro que Montesquieu não defendia a pura e simples restauração dos privilégios nobiliárquicos. Trata-se de procurar, naquilo que confere estabilidade à monarquia, algo que possa substituir o efeito moderador que resultava do papel da nobreza.

Montesquieu vai à Inglaterra, estuda in loco as bases constitucionais da liberdade. Trata-se de uma análise minuciosa da estrutura bicameral da Parlamento britânico - a Câmara Alta, constituída pela nobreza, e a Câmara dos Comuns, eleita por voto popular - e das funções dos três poderes, executivo, legislativo e judiciário. Na sua versão mais divulgada, a teoria dos poderes é conhecida como a separação dos poderes ou a eqüiputência. De acordo com essa versão, Montesquieu estabeleceria, como condição para o Estado de direito, a separação dos poderes executivo, legislativo e judiciário e a independência entre eles. A idéia de equivalência consiste em que essas três funções deveriam ser dotadas de igual poder.

Vale ressaltar, entretanto, que seria curioso buscar a separação e independência entre legislativo e executivo justamente no regime britânico. Montesquieu ressalta, aliás, a interpenetração de funções judiciárias, legislativas e executivas. Basta lembrar a prerrogativa de julgamento pelos pares nos casos de crimes políticos para perceber que a separação total não é necessária nem conveniente. A eqüipotência, ou equivalência dos poderes também é refutada implicitamente por Montesquieu, quando afirma que o judiciário é um poder nulo, "os juízes (são)... a boca que pronuncia as palavras da lei".

Montesquieu mostra claramente que há uma imbricação de funções e uma interdependência entre o executivo, o legislativo e o judiciário. A separação de poderes da teoria de Montesquieu teria, portanto, outra significação. Trata-se, dentro dessa ordem de idéias, de assegurar a existência de um poder que seja capaz de contrariar outro poder. Isto é, trata-se de encontrar uma instância independente capaz de moderar o poder do rei (do executivo). É um problema político, de correlação de forças, e não um problema jurídico-administrativo, de organização de funções,

A estabilidade do regime ideal está em que a correlação entre as forças reais da sociedade possa se expressar também nas instituições políticas. Isto é, seria necessário que o funcionamento das instituições permitisse que o poder das forças sociais contrariasse e, portanto, moderasse o poder das demais.

Lida desta forma, a teoria dos poderes de Montesquieu se torna vertiginosamente contemporânea. Ela se inscreve na linha direta das teorias democráticas que apontam a necessidade de arranjos institucionais que impeçam que alguma força política possa a priori prevalecer sobre as demais, reservando-se a capacidade de alterar as regras depois de jogado o jogo político.

Marcos Katsumi Kay - N1