quinta-feira, 20 de novembro de 2008

BALBACHEVSKY, Elizabeth. Stuart Mill: Liberdade e Representação. In: WEFFORT, Francisco C. (org.) Os Clássicos da Política. São Paulo, Editora Ática,

BALBACHEVSKY, Elizabeth. Stuart Mill: Liberdade e Representação. In: WEFFORT, Francisco C. (org.) Os Clássicos da Política. São Paulo, Editora Ática, 2004, vol. 2.
Estrutura: Stuart Mill: Liberdade e Representação. Um novo liberalismo. Indivíduo e Liberdade.
Resumo:

John Stuart Mill é filho de James Mill, considerado um dos fundadores do utilitarismo inglês. Desde a sua mais tenra infância, Mill se viu às voltas com os projetos educacionais de seu pai, determinado a fazer do jovem Mill o porta-voz da escola utilitarista para as novas gerações. Ao longo dos 67 anos de sua vida, Stuart Mill foi testemunha de mudanças fantásticas tanto na sociedade como na política e na economia de seu país, a Inglaterra. Tão importantes quanto estas transformações na economia e na sociedade inglesa daquela época foram as mudanças que se verificaram na política daquele país. Nesta dimensão, os resultados podem ser agrupados em dois grandes blocos. (1) Em primeiro lugar temos a constituição de um conjunto de instituições capazes de canalizar e dar voz à oposição, criando um sistema legítimo de contestação pública. (2) Em segundo lugar, temos o alargamento das bases sociais do sistema político, com a incorporação de setores cada vez mais amplos da sociedade.

Na época em que Stuart Mill viveu, boa parte dos esforços necessários para tornar efetivos os canais de competição política já havia produzido os seus frutos. A questão candente que desafiava a imaginação das elites políticas inglesas era a incorporação "pacífica" da massa de trabalhadores depauperados pela industrialização, que batiam às portas do sistema político.

Um novo liberalismo. A concepção individualista, num certo sentido, coloca o homem antes da sociedade e vê nesta última, principalmente na sua instância política, um elemento de artificialidade que não aparece na concepção organicista. Para esta perspectiva de análise, as ações humanas são auto-referenciadas e importam em si mesmas. Por isso, podemos dizer que esta concepção inverte a relação indivíduo-grupo, fazendo do último um reflexo do primeiro. O agregado social é, assim, o produto de uma espécie de soma vetorial das atividades, interesses e impulsos dos indivíduos que o compõem.

A obra de Mill conduz a teoria liberal da perspectiva descendente para a ascendente. Por este motivo Stuart Mill é por muitos considerado o grande representante do pensamento liberal democrático do século passado. Com Mill, o liberalismo despe-se de seu ranço conservador, defensor do voto censitário e da cidadania restrita, para incorporar em sua agenda todo um elenco de reformas que vão desde o voto universal até a emancipação da mulher . Na obra de Mill podemos acompanhar um esforço articulado e coerente para enquadrar e responder as demandas do movimento operário inglês.

De certa forma, a obra de Mill pode ser tomada como um compromisso entre o pensamento liberal e os ideais democráticos do século XIX. O fundamento deste compromisso está no reconhecimento de que a participação política não é e não pode ser encarada como um privilégio de poucos. E está também na aceitação de que nas condições modernas, o trato da coisa pública diz respeito a todos. Daí a preocupação de Mill em dotar o estado liberal de mecanismos capazes de institucionalizar esta participação ampliada.

Em Mill, não se trata apenas de acomodar-se ao inevitável. A incorporação dos segmentos populares é para ele a única via possível para salvar a liberdade inglesa de ser presa dos interesses egoístas da próspera classe média. O voto para Mill não é um direito natural. Antes, o voto é uma forma de poder, que deve ser estendido aos trabalhadores para que estes possam defender seus direitos e interesses no mais puro sentido que o liberalismo atribui a esta expressão. Entretanto precisamos nos acautelar não vermos em Stuart Mill um pensador democrata radical. Para ele, a tirania da maioria é tão odiosa quanto a da minoria. Isto porque ambas levariam à elaboração de leis baseadas em interesses classistas. Um bom sistema representativo é aquele que não permite "que qualquer interesse seccional se torne forte o suficiente para prevalecer contra a verdade, a justiça e todos os outros interesses seccionais juntos".

Tendo em vista alcançar estes resultados, Mill propõe duas medidas. (1) Em primeiro lugar, a adoção do sistema eleitoral proporcional, que garantiria a representação das minorias, mesmo quando estas se encontrassem dispersas em vários distritos, não representando a maioria em nenhum deles. (2) Em segundo lugar, a adoção do voto plural (a ainda que contados com pesos diferentes, dando às elites culturais o papel de fiel da balança entre os interesses das classes proprietárias e o dos trabalhadores assalariados).

Indivíduo e liberdade. Para compreendermos o valor que Mill atribui à democracia, é necessário observar com mais atenção a sua concepção de sociedade e indivíduo. A posição de Stuart Mill sobre estas questões tem raízes na concepção utilitarista defendida por Bentham e James Mill. Para estes dois autores, a realidade da economia de mercado constitui-se num paradigma teórico para a construção de seus modelos de sociedade e de indivíduo. Desta forma, a natureza humana parece-lhes essencialmente pragmática. O homem é um maximizador do prazer e um minimizador do sofrimento. A sociedade é o agregado de consciências autocentradas e independentes, cada qual buscando realizar seus desejos e impulsos. O bem-estar pode ser calculado para qualquer homem subtraindo-se o montante de seu sofrimento do valor bruto de seu prazer. Prazer, dor, felicidade e ventura são aqui tomados em um sentido quantitativo radical. E possível assim se chegar a um cálculo da felicidade da sociedade, obtido através do somatório dos resultados destas operações para cada indivíduo. O bom governo será aquele capaz de garantir o maior volume de felicidade líquida para o maior número de cidadãos . Para cada ação ou questão política, é sempre possível aplicar este raciocínio para avaliar a "utilidade" de seus resultados.

Stuart Mill retém em sua obra o princípio básico do utilitarismo, que vê no bem-estar assegurado o critério último para a avaliação de qualquer governo ou sociedade. Entretanto, estabelece distinção fundamental que o levará a trilhar caminhos opostos daqueles advogados por seus mestres. Para Stuart Mill, a primeira dificuldade está em se tomar a felicidade como algo passível de mensuração puramente quantitativa. Na avaliação desta dimensão da natureza humana intervém um elemento qualitativo que lhe é intrínseco. É justamente esta a porta por onde Mill introduz uma alteração radical na concepção sobre a natureza do homem. O Homem é um ser capaz de desenvolver suas capacidades. E, ademais, faz parte de sua essência a necessidade deste desenvolvimento.

Temos assim um modelo progressivo da natureza humana e um critério novo para a aferição de um bom governo: "O grau em que ele tende a aumentar a soma das boas qualidades dos governados, coletiva e individualmente". E aqui funda-se a utilidade da democracia e da liberdade. O governo democrático é melhor porque nele encontramos as condições que favorecem o desenvolvimento das capacidades de cada cidadão. "O efeito revigorante da liberdade só atinge seu ponto máximo quando o indivíduo está, ou se encontra em vias de estar, de posse dos plenos privilégios de cidadão."

Foi na defesa desta liberdade que Mill escreveu On liberty. O argumento central desta obra assenta-se numa proposição bastante simples: O elogio da diversidade e do conflito como forças matrizes por excelência da reforma e do desenvolvimento social. Com a perspicácia que lhe é característica, Mill aponta para o fato de que uma sociedade livre, na medida mesmo em que propicia o choque das opiniões e o confronto das idéias e propostas, cria condições ímpares para que "a justiça e a verdade" subsistam. Desta forma, garante-se, através do conflito, O progresso e a auto-reforma da sociedade. Em sociedades não livres, a reforma e o desenvolvimento social só podem aparecer como fruto do acaso ou de esforços intermitentes levados a cabo por déspotas mais ou menos esclarecidos. Para Mill, a liberdade não é um direito natural. É antes de mais nada o substrato necessário para o desenvolvimento de toda a humanidade. E o é principalmente porque ela torna possível a manifestação da diversidade, a qual, por sua vez, é o ingrediente necessário para se alcançar a verdade.

Na obra de Mill encontramos a pré-história de duas noções muito caras à ciência política contemporânea: (1) a defesa do pluralismo e da diversidade societal contra as interferências do Estado e da opinião pública (esta última, a tirania da "opinião prevalecente", a pior, porque mais sistemática e cotidiana); (2) e a perspectiva de sistemas abertos, multipolares, onde a administração do dissenso predomine sobre a imposição de consensos amplos.

Marcos Katsumi Kay - N1

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

BRANDÃO, Gildo Marçal. Hegel: O Estado como Realização Histórica da Liberdade. In: WEFFORT, Francisco C. (org.) Os Clássicos da Política.

BRANDÃO, Gildo Marçal. Hegel: O Estado como Realização Histórica da Liberdade. In: WEFFORT, Francisco C. (org.) Os Clássicos da Política. São Paulo, Editora Ática, 2004, vol. 2.
Estrutura: Hegel: o Estado como realização histórica da liberdade. Hegel e os Contratualistas. A questão da história. Particularidade: propriedade e liberdade. A liberdade concreta. De Maquiavel a Hegel. A reação a Hegel.
Resumo:

Do ponto de vista teórico, o Hegel da Filosofia do direito é o primeiro a fixar o conceito de sociedade civil como algo distinto e separado do Estado político, distinção que substitui, deslocando e subvertendo os seus conteúdos, tudo o que estes filósofos elaboraram através dos conceitos de estado de natureza e estado civil. A sociedade civil é definida como um sistema de carecimentos, estrutura de dependências recíprocas onde os indivíduos satisfazem as suas necessidades através do trabalho, da divisão do trabalho e da troca; e asseguram a defesa de suas liberdades, propriedades e interesses através da administração da justiça e das corporações. Trata-se da esfera dos interesses privados, econômico-corporativos e antagônicos entre si. A ela se contrapõe o Estado político, isto é, a esfera dos interesses públicos e universais, na qual aquelas contradições estão mediatizadas e superadas. O Estado não é, assim, expressão ou reflexo do antagonismo social, a própria demonstração prática de que a contradição é irreconciliável, mas é esta divisão superada, a unidade recomposta e reconciliada consigo mesma. A marca distintiva do Estado é esta unidade, que não é uma unidade qualquer, mas a unidade substancial que traz o indivíduo à sua realidade efetiva e corporifica a mais alta expressão da liberdade.

Deve-se chamar a atenção para o fato de que a sociedade civil hegeliana não engloba apenas a esfera das relações econômicas e a formação das classes, mas também a administração da justiça e o ordenamento administrativo e corporativo. Por outro lado, também a esfera pré-estatal é historicamente produzida, não um estado de natureza. Família e sociedade civil - as esferas que aparentemente estão fora e são anteriores ao Estado - na verdade só existem e se desenvolvem no Estado. Não há história fora do Estado. Não há nada fora da história.

Hegel e os Contratualistas. A elaboração hegeliana deve ser entendida tendo como pano de fundo o que vem antes dela, o que prossegue e contra o que se insurge. Sua teoria política é, de certo ponto de vista, o momento mais alto a que chegou o jusnaturalismo - o movimento teórico-político que engloba Hobbes e Locke, Spinoza e Rousseau, mas também Kant e Fichte -, tradição que modifica radicalmente, subvertendo os seus conceitos, criando novos, construindo um método e uma teoria global sem precedentes.

A teoria contratualista faz do indivíduo o alfa e o ômega da vida social. Toma o Estado como algo derivado, uma criação artificial, produto de um pacto, ação voluntária pela qual os indivíduos abdicam de sua liberdade originária em benefício de um terceiro, dando vida a um corpo político soberano que lhes garanta vida, liberdade e bens. Tarefa precípua do Estado é, então, garantir a liberdade individual e a propriedade privada. Por essa via, entretanto, a teoria contratualista é incapaz de explicar por que o Estado pode exigir do indivíduo o sacrifício da própria vida em benefício da preservação e do desenvolvimento do todo. Ao fazer do interesse particular do indivíduo o conteúdo do Estado, ela está, segundo Hegel, confundindo Estado e sociedade civil. Na verdade, o indivíduo sequer escolhe se participa ou não do Estado - é constituído como tal por ele. A relação entre os dois é, portanto, de outra natureza: substantiva e não formal, efetiva e não optativa. Somente como membro do Estado é que o indivíduo ascende à sua "objetividade, verdade e moralidade".

A inversão hegeliana é completa. "A associação como tal é o verdadeiro conteúdo e o verdadeiro fim, o destino dos indivíduos é viver uma vida universal". O Estado é a totalidade orgânica de um povo, não um agregado, um mecanismo, um somatório de vontades arbitrárias e inessenciais. A força associativa do conjunto, da relação do todo com as partes, se revela precisamente na guerra.

A questão da história. Característico dos jusnaturalistas é a contraposição da história entre princípios supra-históricos e a própria história. É por isso, diz Hegel, que eles procuram estabelecer como o Estado deveria ser, em vez de tentar compreendê-lo como ele é. As conseqüências são dramáticas. Ao construírem a teoria do contrato, eles pressupõem a existência - lógica ou histórica - de indivíduos livres e vivendo isolados e separados uns dos outros, fora e antes da sociedade e da história. Criam uma ficção. Esta metodologia, que procura apreender formas objetivas da existência histórica por uma via apriorística e abstrata, apenas cristaliza antíteses históricas em antíteses teóricas, sem resolvê-las. Ao tomarem a natureza humana fora de seu desenvolvimento histórico, acabam por opor às manifestações concretas da história dos homens um conjunto de faculdades, uma possibilidade abstrata, um mero dever ser a partir do qual pretendem refazer o estado de coisas existente. Nada mais distante de Hegel, cuja ambição era não elaborar uma filosofia da história, se por esta se entende uma filosofia sobre a história, mas a de construir a filosofia enquanto expressão especulativa da própria história. Tendo, neste sentido, verdadeiro horror a qualquer tentativa de teorizar um ideal de Estado ou um Estado ideal, a partir do qual a realidade pudesse ser medida e "criticada".

Particularidade: propriedade e liberdade. Influenciado pela Revolução Francesa, o jovem Hegel um dia acreditou na possibilidade de restauração da polis grega. Esta ilusão foi abandonada por volta dos trinta anos, a partir da qual Hegel descobre o que considera a marca distintiva da modernidade. Numa interpretação da República platônica, ele recusa-se a analisá-la como uma utopia, um modelo normativo ou um ideal que nada tem a ver com a realidade concreta. Considera A República como a verdade do mundo grego, o sentido para o qual este tendia e teria alcançado, não tivesse sido bloqueado pelo aparecimento da particularidade. A Cidade-Estado não pode suportar o surgimento da propriedade privada e da individualidade.

É este mal que é portador de futuro. A liberdade subjetiva, a autonomia da pessoa privada só aparecem interiormente com o cristianismo e exteriormente com o mundo romano. Este, no entanto, só foi capaz de pôr uma universalidade abstrata diante de uma pessoa também abstrata. Apenas na modernidade é que a particularidade se emancipa, toma consciência de si e se universaliza. Característico do Estado moderno é ser justamente um todo que subsiste na e através da mais extrema autonomização das partes.

Deve-se chamar a atenção para o fato de que esta concepção não escapou de ser chamada de totalitária, porque organicista. O pressuposto do argumento é que o fundamento epistemológico e ontológico da democracia não pode não ser o individualismo e a visão hegeliana, ao contrário, compartilha com qualquer organicismo o princípio aristotélico do todo que é maior do que a soma das partes. O problema desta interpretação é que pouco há de comum entre uma totalidade que existe quando e porque desenvolve todas as determinações que é capaz de conter, que procede não por aniquilação e eliminação das partes mas por sua diversificação e autonomização, e uma totalidade na qual as determinações e todas as diferenciações desaparecem.

Liberdade concreta. Aristotelicamente, é livre quem é por si mesmo e não por outro. Quem é dependente não é livre. Em suas Lições sobre a filosofia da universal, Hegel diz que "o Oriente sabia e sabe que somente um é livre, o mundo grego e romano, que alguns são livres, o mundo germânico sabe que todos são livres". Esta teoria da liberdade que se realiza historicamente está na base de sua teoria das formas de governo, que retoma a classificação de Montesquieu: "Em conseqüência, diz, a primeira forma que temos na história universal é o despotismo, a segunda, a democracia e aristocracia, a terceira, a monarquia". Para chegar a tais resultados, foi preciso elaborar um novo conceito de liberdade.

Como tudo em Hegel, não existe liberdade em geral. O conceito desta supõe sempre o seu contrário, no caso concreto, a existência de determinada coerção, variável historicamente. No sentido de Locke, ela se define pela ausência de qualquer constrição e, em seguida, pelo limite que outra liberdade me opõe. Rousseau avança para além dessa liberdade meramente negativa, em direção à liberdade positiva. Ambas, especialmente a primeira, se traduzem num sistema de direitos (civis, mas, em seguida, também políticos e sociais), garantidos por lei e pelo ordenamento estatal, direitos estes que estão historicamente, em maior ou menor grau, à disposição dos cidadãos. A segunda configura especificamente essa participação política nos negócios do Estado por parte dos indivíduos que têm por meta fins particulares e os negócios da sociedade civil.

Denunciando suas limitações, a concepção hegeliana de liberdade não elimina mas incorpora tais determinações. Ela considera que a Revolução Francesa colocou mas não resolveu o problema da realização política da liberdade. Considerando-a como um estado em que o homem pode se realizar como homem e construir um mundo adequado ao seu conceito, a concepção hegeliana de liberdade concreta exige que a liberdade se eleve à consciência da necessidade - vale dizer, dos nexos objetivos e da legalidade própria da natureza e da história, das leis de seu desenvolvimento objetivo -, à compreensão do que a realidade é, porque o que é, é a Razão.

De Maquiavel a Hegel. Com Hegel, portanto, completa-se o movimento iniciado por Maquiavel, voltado para apreender o Estado tal como ele é, uma realidade histórica, inteiramente mundana, produzida pela ação dos homens. Nesse foram definitivamente arquivadas as teorias da origem natural ou divina do poder político; afirmada a absoluta soberania e excelência do Estado; a especificidade da política diante da religião, da moral e de qualquer outra ideologia; reconhecida a modernidade e centralidade da questão da liberdade e, sobretudo - pois é esta a principal contribuição de Hegel -, resolvido o Estado num processo histórico, inteiramente imanente.

A reação a Hegel. A preocupação de Hegel não é, como vimos, apenas construir uma teoria do Estado legítimo, uma nova justificação racional do Estado. Ele avança, além disso, para atribuir ao Estado as características da própria razão. Ora, ao considerá-lo "a realidade em ato da idéia ética", o "racional em si e para si", o absoluto no qual a liberdade encontra sua supre ma significação - ele despertou a suspeita generalizada de que estaria muito prosaicamente justificando o Estado existente.

Tentativa mais ousada e polêmica foi aquela realizada por Georg Lukács, num livro escrito na década de 30 sobre O jovem Hegel e os problemas da sociedade capitalista. Lukács não nega a progressiva conservadorização da teoria hegeliana, inegável à simples comparação entre o lugar e a função que a Revolução Francesa ocupa na Fenomenologia do espírito e na seca arquitetura da Filosofia do direito, que é a culminação do sistema hegeliano. No primeiro, a Revolução Francesa está no início do processo de instauração da modernidade; no segundo, no seu fim. Nem reduz esta mudança a uma mera inflexão tática, conjuntural. Ao contrário, tal deslocamento repercute na própria estrutura da teoria: na Fenomenologia, a coruja de Minerva não alça vôo apenas ao cair da noite, ela também anunciava o amanhecer.

A novidade da análise, entretanto, é que é precisamente este retrocesso, esta reconciliação com a realidade, que permite a Hegel perceber e formular com clareza, acuidade e amplitude até então inigualáveis os problemas da sociedade européia de seu tempo. Em outros termos, tal reconciliação é a condição de possibilidade sem a qual Hegel não teria sido o primeiro filósofo a se colocar "do ponto de vista da economia política moderna", conforme o Marx dos Manuscritos de 1844, que Lukács desenvolve. Assim, Hegel é não só o filósofo que mais profunda e adequada cornpreensão tem na Alemanha da essência da Revolução Francesa e do período napoleônico, mas, além disso, o único pensador alemão do período que se ocupou seriamente dos problemas da Revolução Industrial ocorrida na Inglaterra, e o único que então pôs os problemas da economia clássica inglesa em relação com os problemas da filosofia da dialética.

Marcos Katsumi Kay - N1

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

ANDRADE, Regis de Castro. Kant: A Liberdade, O Indivíduo e a República.

ANDRADE, Regis de Castro. Kant: A Liberdade, O Indivíduo e a República. In: WEFFORT, Francisco C. (org.) Os Clássicos da Política. São Paulo, Editora Ática, 2004, vol. 2.
Estrutura: A filosofia da moral e a dignidade do indivíduo. O imperativo categórico. A liberdade externa e a autonomia. A doutrina do direito. Direito privado e direito público. O direito privado: a fundamentação jurídica do meu e do teu. A constituição da sociedade civil e o direito público. A negação do direito de resistência ou de revolução. o Estado liberal. A cidadania. A república. A filosofia da história como progresso da humanidade. A dialética kantiana da história. A confederação dos Estados livres e a paz.
Resumo:

A filosofia da moral e a dignidade do indivíduo. O conhecimento racional, diz Kant, versa sobre objetos ou sobre suas próprias leis. Há dois gêneros de objetos: a natureza, que é o objeto da física, e a liberdade, que é o objeto da filosofia moral ou ética. O conhecimento das leis da própria razão, por sua vez, constitui a lógica; esse conhecimento é puramente formal, isto é, independente da experiência. Toda a filosofia kantiana do direito, da política e da história repousa sobre a concepção dos homens como seres morais: eles devem organizar-se segundo o direito, adotar a forma republicana de governo e estabelecer a paz internacional, porque tais são comandos a priori da razão, e não porque sejam úteis.

O imperativo categórico. A norma moral tem a forma de um imperativo categórico. O comando nela contido assinala a relação entre um dever ser que a razão define objetivamente e os móveis humanos, os quais, por sua constituição subjetiva, não conduzem necessariamente à realização daquela finalidade moral. O comando moral é categórico porque as ações a ele conformes são objetivamente necessárias, independentemente da sua finalidade material ou substantiva particular. Modelos de democracia. Desempenho e padrões de governo em 36 países Assim se compreende a fórmula kantiana da Lei Universal, ou imperativo categórico: "Aja sempre em conformidade com o princípio subjetivo, tal que, para você, ele deva ao mesmo tempo transformar-se em lei universal". Sendo universais, as normas morais que nos conduzem são elaboradas por nós mesmos enquanto seres racionais. Ou seja: a humanidade, e cada um de nós, é um fim em si mesmo. Se o agente racional é verdadeiramente um fim em si mesmo, ele deve ser o autor das leis que observa, e é isso que constitui seu supremo valor. Ora, obedecer às suas próprias leis é ser livre.

A liberdade externa e a autonomia. A liberdade, em Kant, é a liberdade de agir segundo leis. As leis descrevem relações de causa e efeito. Portanto os homens são livres quando causados a agir. Nos seres racionais a causa das ações é o seu próprio arbítrio. Num primeiro sentido, portanto, a liberdade é a ausência de determinações externas do comportamento. Esse é o conceito negativo de liberdade. A liberdade tem leis; e se essas leis não são externamente impostas, só podem ser auto-impostas. Esse é o conceito positivo de liberdade; ele designa a liberdade como autonomia, ou a propriedade dos seres racionais de legislarem para si próprios.

A doutrina do direito. Normalmente, o direito é "o corpo daquelas leis susceptíveis de tornar-se externas, isto é, externamente promulgadas". Toda e qualquer lei impõe deveres; mas o cumprimento desses deveres pode ou não ser coativamente exigido. No primeiro caso, trata-se de leis morais; no segundo, de normas jurídicas. Nesse argumento, a moral abrange o direito. O fundamento de ambos os tipos de leis é a autonomia da vontade, e a referência a esse fundamento moral é constitutiva do direito. As normas jurídicas são universais; elas obrigam a todos, independentemente de condições de nascimento, riqueza etc. Quem viola a liberdade de outrem ofende a todos os demais, e por todos será coagido a conformar-se à lei e compensar os danos causados. A coerção é parte integrante do direito; a liberdade, paradoxalmente, requer a coerção. Duas são as condições para o uso justo da coerção. A primeira é a seguinte: "Se um certo exercício da liberdade é um obstáculo à liberdade [de outrem] segundo as leis universais [isto é, se é injusto], então o uso da coerção para opor-se a ele [...] é justo". A segunda decorre da universalidade das leis violadas: a coerção só é justa quando exercida pela vontade geral do povo unido numa sociedade civil.

Direito privado e direito público. Como jusnaturalista, Kant distingue entre a lei natural e a lei positiva (segundo a fonte) e entre direitos inatos e adquiridos (segundo sua exigibilidade dependa ou não do seu acolhimento na lei positiva). As leis naturais se deduzem de princípios a priori; elas não requerem promulgação pública e constituem o direito privado. As segundas expressam a vontade do legislador. São promulgadas e constituem o direito público. O direito público, ou positivo, não é idêntico ao direito natural; mas é necessário pressupor a existência de um nexo sistemático entre eles, através do qual o princípio comum da justiça como liberdade opera, em grau maior ou menor, na esfera do direito positivo e constitui, dessa forma, a sua juridicidade. A distinção kantiana entre direito privado e público ressalta a existência, no estado de natureza, de um certo tipo de sociabilidade natural derivada da racionalidade humana: "O estado de natureza não é oposto e contrastado ao estado de sociedade, mas à sociedade civil, porque no estado de natureza pode haver uma sociedade, mas não uma sociedade civil".

A constituicão da sociedade civil e o direito público. O direito público é o direito positivo, emanado do legislador para a regulação dos negócios privados (justiça comutativa) e das relações entre a autoridade pública e os cidadãos (justiça distributiva). Os indivíduos que se relacionam em conformidade com leis publicamente promulgadas constituem uma sociedade civil (status civilis); vista como um todo em relação aos membros individuais, a sociedade civil se denomina Estado (civitas). Os termos "sociedade civil" e "Estado", portanto, referem-se ao mesmo objeto, considerado de pontos de vista distintos. A transição à sociedade civil é um dever universal e objetivo, porque decorre de uma idéia a priori da razão. É certo que os homens no estado de natureza tendem a hostilizar-se; mas a passagem de um estado a outro não obedece a motivos de utilidade. Trata-se de um imperativo moral: o estado civil é a realização da idéia de liberdade tanto no sentido negativo como positivo. Pressupondo-se necessariamente a juridicidade provisória do estado natural, o ato pelo qual se "constitui" o Estado é o contrato originário, concebido como idéia a priori da razão: sem essa idéia, não se poderia pensar um legislador encarregado de zelar pelo bem comum, nem cidadãos que se submetem voluntariamente às leis vigentes.

A negação do direito de resistência ou de revolução. Os cidadãos não podem opor-se aos seus governantes em qualquer hipótese. A teoria kantiana da obrigação política, vinculada à sua concepção apriorística do contrato, estabelece o dever de obediência às leis vigentes, ainda que elas sejam injustas. "A mais leve tentativa [de rebelar-se contra o chefe do Estado] é alta traição, e a um traidor dessa espécie não pode ser aplicada pena menor que a morte". Ali, ele admite que o destronamento do monarca pode ser escusável, embora não permissível: "O povo poderia ter pelo menos alguma desculpa por forçar [o destronamento] invocando o direito de necessidade (casus necessitatis)" .

O Estado liberal. Kant é um teórico do liberalismo, concebe o Estado como um instrumento (necessário) da liberdade de sujeitos individuais. A autonomia deduz-se da liberdade e a preserva e garante. A liberdade como não impedimento no estado de natureza é precária, e requer o exercício da autonomia. A reconciliação dos homens consigo mesmos enquanto seres livres necessita a promulgação pública das leis universais, que manifesta a disposição de todos e de cada um de viver em liberdade. Nega-se às autoridades públicas o dever e o direito de promover a felicidade, o bem-estar ou, de modo geral, os objetivos materiais da vida individual social. A legislação deve assentar sobre princípios universais e estáveis , ao passo que as preferências subjetivas são variáveis de indivíduo a indivíduo e cambiantes no tempo. A ninguém é dado o direito de prescrever a outrem a receita da sua felicidade. Ao Estado incumbe promover o bem público; o bem público é a manutenção da juridicidade das relações interpessoais. "As leis do direito público referem-se apenas à forma jurídica da convivência entre os homens".

A cidadania. Quando unidos para legislar, os membros da sociedade civil são denominados cidadãos. São características dos cidadãos a autonomia (capacidade de conduzir-se segundo seu próprio arbítrio), a igualdade perante a lei (não se diferenciam entre si quanto ao nascimento ou fortuna) e a independência (capacidade de sustentar-se a si próprios). Essa concepção de cidadania tem por base os direitos inatos à liberdade e à igualdade. Nenhuma Constituição poderia autorizar a escravidão, por ser ela absolutamente incompatível com os princípios da justiça. Estabelecida a sociedade segundo o direito, nem todos os seus membros qualificam-se para a atuação política através do voto, ou seja, para a cidadania ativa . Não se qualificam os que vivem sob a proteção ou sob as ordens de outrem, como os empregados, os menores e as mulheres; esses são cidadãos passivos. Por igualdade deve-se entender a igualdade de oportunidades. "As leis vigentes", diz Kant, "não podem ser incompatíveis com as leis naturais da liberdade e da igualdade que corresponde a essa igualdade, segundo as quais todos podem elevar-se da situação de cidadãos passivos ao de cidadãos ativos".

A república. A melhor forma de Estado é a república. Idéia objetivamente necessária e universalmente válida; seus atributos são deduzidos de princípios a priori. A república é o "espírito do contrato originário", pelo qual os governantes se obrigam a aproximar-se, praticamente, da idéia de uma Constituição política legítima. Na Constituição legítima, ou republicana (a) a lei é autônoma, isto é, manifesta a vontade do povo, e não a vontade de indivíduos ou grupos particulares e (b) cada pessoa tem a posse do que é seu peremptoriamente, visto que pode valer-se da coação pública para garantir seus direitos. O princípio da Constituição republicana é a liberdade; nela se conjugam a soberania popular (a vontade legislativa autônoma) e a soberania do indivíduo na esfera juridicamente limitada dos seus interesses e valores particulares.

A república é a melhor Constituição do ponto de vista do modo de funcionamento da sociedade, independentemente de quem governa. O Estado pode ser monárquico, aristocrático ou democrático; o que importa é que seja republicano. A república opõe-se ao despotismo, não à monarquia. O princípio político do republicanismo é a separação entre os poderes executivo (a administração) e legislativo. No despotismo, o soberano executa as leis que ele mesmo decretou.

Essa questão requer alguma elaboração. Como se observou acima, o bem do Estado como união do povo segundo suas próprias leis (civitas) - por oposição ao bem individual - é sua autonomia com respeito a todo e qualquer interesse particular ou poder externo. Em outras palavras, para que se preserve a liberdade política, é necessário que a esfera pública mantenha-se rigorosamente imune a influências particulares ou privadas. Para que esse supremo valor político (que é ao mesmo tempo moral e jurídico) se realize, é imperativo que ele assuma a forma que a razão a priori lhe recomenda.

O legislativo (a autoridade soberana) emite puros comandos universais, ou leis. O governante (rex, princeps) , ele mesmo submetido às leis, não pode legislar; ele executa os comandos gerais em situações cambiantes, através de decretos e regulamentos. O judiciário aplica a lei a casos individuais após julgamento pelo júri. A dedução é silogística: uma premissa maior, uma menor e a conclusão. Essa arquitetura-polítíca promove a cooperação entre os poderes - pode-se supor que Kant aluda aqui a ganhos de eficiência no desempenho estatal - e impede que um poder usurpe as atribuições do outro e instaure o despotismo.

A filosofia da história como progresso da humanidade. Kant procura demonstrar que a humanidade progride e que o progresso humano só pode ser um aperfeiçoamento moral. A história universal é a história natural do progresso da razão. A primeira tese já deixa entrever o percurso e o resultado do argumento: "Todas as capacidades naturais de uma criatura são destinadas a desenvolver-se completamente até a sua finalidade natural". Trata-se de um processo inevitável. A segunda tese sustenta que o desenvolvimento das faculdades racionais se observa A terceira tese apresenta o progresso como racionalização do mundo, e em particular das relações sociais e políticas, tal como indicam as teses subseqüentes. A história humana tende para o "Estado perfeitamente constituído".

A dialética kantiana da história. A política, como atividade de elaboração e aperfeiçoamento constitucional, é um processo de racionalização das relações entre os homens e entre os Estados. Mas o progresso não é um processo rápido, nem indolor. Ele é lento, enganoso e sobretudo contraditório. A humanidade avança por efeito da contraditoriedade das opiniões, dos interesses particulares e dos interesses nacionais. As opiniões devem entrechocar-se livremente. O povo rebelado, sob a liderança de políticos ilustrados, pode derrubar um tirano, mas não altera seu nível cultural. O verdadeiro caminho é a liberdade, a liberdade de opinião e de imprensa. O soberano não é divino, e pode errar; é necessário, portanto, conceder aos cidadãos, com o beneplácito do próprio soberano, o direito de emitir publicamente suas opiniões e a liberdade de escrever. O alargamento do debate público é condição do progresso. Outra mola do progresso é o conflito de interesses individuais e de nacionais. O progresso aparece como resultante não intencional da interação humana; uma "finalidade secreta da natureza". O antagonismo kantiano não é incompatível com a sociabilidade natural nem com a sociedade civil, ele atribui ao antagonismo humano uma função positiva: a competição e a guerra não se relacionam à justiça e à paz como termos imediatamente antitéticos, mas como mediações do progresso. Não se trata de celebrar o interesse particular enquanto tal, mas de reconciliar os particularismos em choque com a idéia de uma sociedade justa.

A confederação dos Estados livres e a paz. A história se desenrola segundo a lei natural do progresso moral; mas a intervenção política deliberada segundo a razão faz-se necessária para que se evitem as guerras. Embora definindo a paz como um princípio moral a priori - "a razão moral prática dentro de nós comanda irresistivelmente: não haverá guerra" - a cessação efetiva das hostilidades requer um acordo real, e não simplesmente ideal, entre as potências. O princípio da paz deve materializar-se efetivamente numa "confederação dos Estados livres", segundo a idéia de uma "Liga das Nações para a paz". Enfim, a Liga das Nações não constitui um soberano por sobre os Estados nacionais; por isso, ele pode ser desfeito, e deve ser refeito de tempos em tempos.

A relativa materialização da idéia da paz aparece também na reflexão sobre os fatores que contribuem para o fim das guerras. por um lado, a paz depende de que em cada país os povos tenham-se organizado em sociedade jurídica. Se o pacto originário em cada país cria a república, o pacto que constitui a Liga das Nações pressupõe a república como regime político nos países contratantes. Ao povo não interessa a guerra e, quando pode manifestar-se livremente sobre a questão, declara-se contra ela. Kant associa o processo da paz ao longo e contraditório processo natural de constituição do Estado segundo a justiça. O dever moral é inescapável, não se pode ao mesmo tempo dizer que não é possível cumpri-lo: não há, portanto, conflito entre moral e política. Mas esses dois conceitos não são idênticos. A moral refere-se à doutrina teórica do direito; a política, à doutrina prática do direito. A política, orientando-se pelos mandamentos incondicionais da razão, envolve a escolha prudente dos meios adequados à consecução dos seus fins. Não é de esperar, nem é desejável, que "os reis filosofem e os filósofos reinem". Kant justifica sua posição dizendo que o poder corrompe o livre julgamento da razão. Pode-se acrescentar: os filósofos, em sua "pureza de pombas", corromperiam a necessária "astúcia das serpentes políticas". Idéia e realidade mantêm-se externas uma à outra.

Marcos Katsumi Kay - N1

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

KINZO, Maria D´Alva Gil. Burke: A Continuidade Contra a Ruptura.

KINZO, Maria D´Alva Gil. Burke: A Continuidade Contra a Ruptura. In: WEFFORT, Francisco C. (org.) Os Clássicos da Política. São Paulo, Editora Ática, 2004, vol. 2.
Estrutura: Burke: a continuidade contra a ruptura. Estado e sociedade. Constituição. Partidos.
Resumo:

Pensador e político inglês século XVIII, Edmund Burke é considerado o fundador do conservadorismo moderno. Tal atributo lhe foi imputado menos em função de sua brilhante carreira como parlamentar Whig (grupo partidário liberal), defensor das liberdades e do constitucionalismo dos ingleses, do que em virtude de suas formulações teóricas nascidas de seu ataque ferrenho aos revolucionários franceses e seus defensores na Inglaterra. Burke foi um pensador e político que nunca chegou a expor de modo sistemático suas idéias fundamentais. Estas emergem em meio a críticas e argumentos construídos na discussão acerca de questões concretas. Sua despreocupação com a sistematização de seu pensamento muito se deve ao fato de esposar uma visão hostil às abstrações.

Estado e Sociedade. Apesar de suas constantes referências pouco elogiosas ao pensamento abstrato, sua concepção sobre o Estado e a sociedade baseia-se em determinadas suposições sobre a natureza do Universo. Estado e sociedade fazem parte da ordem natural do Universo, que é uma criação divina. Segundo Burke, Deus criou um Universo ordenado, governado por leis eternas. Os homens são parte da natureza e estão sujeitos às suas leis. Estas leis eternas criam suas convenções e o imperativo de respeitá-las; regulam a dominação do homem pelo homem e controlam os direitos e obrigações dos governantes e governados. Os homens, por sua vez, dependem uns dos outros, e sua ação criativa e produtiva se desenvolve através da cooperação. Esta requer a definição de regras e a confiança mútua, o que é desenvolvido pelos homens, com o passar do tempo, através da interação, da acomodação mútua e da adaptação ao meio em que vivem. É desse modo que eles criam os princípios comuns que formam a base de uma sociedade estável.

Alguns pontos podem assim ser assinalados quanto à concepção de Burke acerca da natureza da sociedade e do Estado. (1) Em primeiro lugar, a sociedade tem uma essência moral, um sistema de mútuas expectativas, deveres e direitos sociais (e não naturais). (2) Em segundo lugar, vemos em Burke a idéia de que a sociedade é natural e de que os homens são por natureza sociais. E aqui cabe frisar que, para Burke, faz também parte da natureza das coisas a desigualdade. (A natureza é hierárquica; assim, uma sociedade ordenada é naturalmente dividida em estratos ou classes, de modo que a igualdade, tanto politíca, social como econômica, vai contra a natureza. Para Burke, a idéia de igualdade, esta "monstruosa ficção" apregoada pela Revolução Francesa, só serve para subverter a ordem e "para agravar e tornar mais amarga a desigualdade real que nunca pode ser eliminada e que a ordem da vida civil estabelece, tanto para benefício dos que têm de viver em uma condição humilde" como dos privilegiados.) (3) Em terceiro lugar, tem-se a idéia de que a sociedade não apenas tem origem divina mas também é divinamente ordenada. Segundo Burke, Deus nos legou o Estado, que é o meio necessário pelo qual nossa natureza é aperfeiçoada pela nossa virtude. Nesse sentido, a sociedade e o Estado possibilitam a realização das potencialidades humanas. (Pode-se identificar em Burke uma atitude de veneração ao Estado. Como afirma Burke, o Estado é "uma associação de toda ciência, de toda arte, de toda virtude e de toda perfeição [... ] uma associação não apenas os vivos, mas também entre os mortos e os que irão nascer". E isso nos leva a fazer alusão a um outro traço importante do pensamento de Burke: sua defesa da continuidade, sua reverência à tradição social e constitucional.)

Constituição. Uma constante no pensamento político de Burke, aparente tanto quando ele criticava o governo autocrático e a política colonial da Coroa como quando vilipendiava a Revolução Francesa, é a defesa da Constituição inglesa. Muito do seu sentido de conservação está referido ao que esta Constituição, a seu ver, representava ou personificava. (1) Em primeiro lugar, ela representava o pacto voluntário pelo qual uma sociedade é criada; e por se basear em um contrato voluntário inicial, ela é um imperativo para todos os indivíduos de uma sociedade. (2) Em segundo lugar, a Constituição inglesa personificava a tradição, e por isso deveria ser respeitada, porque esta representa a "progressiva experiência" do homem. (Afirma Burke: "Nossa Constituição é uma Constituição prescritiva; é uma Constituição cuja única autoridade consiste no fato de ter existido desde tempos imemoráveis". E as velhas instituições são as mais úteis, porque elas têm a sabedoria de Deus trabalhando através da experiência dos homens no curso de sua história.) (3) Em terceiro lugar, defender a Constituição inglesa significava defender o arranjo político instaurado a partir da Revolução de 1688, que garantia o equilíbrio entre Coroa e o Parlamento. Este arranjo político consagrava à monarquia a condição de instituição central da ordem política, ao personificar o objeto "natural" de obediência e reverência; mas atribuía ao Parlamento - corpo representativo dos diferentes interesses do reino - a condição de contrapeso da instituição monárquica, possibilitando o necessário controle sobre os abusos do poder real. (1) Assim, tem uma posição-chave nesse arranjo constitucional a Câmara dos Comuns, através da qual o povo está representado. (2) No entanto, o caráter representativo desta Câmara é para Burke muito mais virtual do que real, e tem pouco a ver com base eleitoral, mesmo porque Burke se opunha à extensão do sufrágio. (Segundo Burke, os interesses têm uma realidade objetiva e são o fruto de debate e deliberação entre homens de sabedoria e de virtude, não se confundindo com os meros desejos e opiniões do povo. É nesse sentido que Burke defendia o mandato independente na atividade de um representante. É portanto um direito e um dever dos membros do Parlamento seguir sua própria consciência e julgamento independente, ao invés de obedecer aos desejos ou instruções de sua base.)

Partidos. Finalmente cabe ressaltar a importância assinalada por Burke aos partidos políticos, peça essencial de um governo livre. Na verdade, Burke foi quem primeiro atribuiu um significado positivo ao termo partido político, dissociando-o do caráter faccioso originalmente atribuído aos agrupamentos políticos. Burke formulou a definição clássica de partido político: "Um grupo de homens unidos para a promoção, através de seu esforço conjunto, do interesse nacional, com base em algum princípio determinado com o qual todos concordam". Os partidos são instrumentos necessários para que planos comuns possam ser postos em prática "com todo o poder e autoridade do Estado".

Concebendo a sociedade como um organismo que encarnava a ordem moral de origem divina; fiel defensor da hierarquia social, das prescrições, dos direitos herdados e da continuidade histórica; crítico ferrenho das idéias e práticas da Revolução Francesa; Burke tornou-se o exponente máximo do pensamento conservador. Mas Burke foi também um vigoroso inimigo do grupo do rei Jorge III, crítico contumaz do governo autocrático e do imperialismo britânico em sua forma vigente na América, Irlanda e Índia no século XVIII; defensor de uma economia de mercado, da tolerância religiosa e dos princípios liberais da Revolução Whig de 1688. Tais atributos é que deram a Burke o título de constitucionalista liberal. Um liberal conservador, esta seria a melhor denominação para Burke; e discutir sua concepção sobre representação política, sobre partidos e governo partidário, ajuda-nos a conhecer os mecanismos de um regime parlamentar.

Marcos Katsumi Kay - N1

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

LIMONGI, Fernando Papaterra. O Federalista: remédios republicanos para males republicanos.

LIMONGI, Fernando Papaterra. O Federalista: remédios republicanos para males republicanos. In: WEFFORT, Francisco C. (org.) Os Clássicos da Política. São Paulo, Editora Ática, 2004, vol. 1.
Estrutura: O moderno federalismo. A separação dos poderes e a natureza humana. As repúblicas e as facções.
Resumo:

Obra conjunta de três autores, Alexander Hamilton, James Madison e John Jay, "O Federalista" explicita a teoria política a fundamentar o texto constitucional. O desafio teórico enfrentado por "O Federalista" era o de desmentir os dogmas arraigados de uma longa tradição. Tratava-se de demonstrar que o espírito comercial da época não impedia a constituição de governos populares e que estes dependiam exclusivamente da virtude do povo ou precisavam permanecer confinados a pequenos territórios. Um dos eixos estruturadores de "O Federalista" é o ataque à fraqueza do governo central instituído pelos Artigos da Confederação.

A experiência histórica demonstrava que as confederações " haviam sido levadas à ruína pelas razões apresentadas por Hamilton. Insistir na formação de uma Confederação seria desconhecer as lições da história e se prender às conjecturas de Montesquieu, que via nestas a possibilidade de compatibilizar as qualidades positivas dos Estados grandes - a força - com a dos pequenos - a liberdade.

Em "O Federalista" é possível notar a dificuldade em nomear a forma de governo proposta. A proposta não é estritamente nacional ou federal, mas uma composição de ambos os princípios. A distinção está no ponto assinalado por Hamilton; enquanto em uma confederação o governo central só se relaciona com Estados, cuja soberania interna permanece intacta, em uma Federação esta ação se estende aos indivíduos, fazendo com que convivam dois entes estatais de estatura diversa, com a órbita de ação dos Estados definida pela Constituição da União.

Trata-se de um recurso de argumentação utilizado para justificar a necessidade de criação do Estado - um tema ao qual "O Federalista" dedica, em verdade, pouca atenção - e do estabelecimento de controles bem definidos sobre os detentores do poder - o tema central de "O Federalista". Controlar os detentores do poder porque, como observa Madison, os homens não são governados por anjos, mas sim por outros homens, daí porque seja necessário controlá-los. "Ao constituir-se um governo - integrado por homens que terão autoridade sobre outros homens- a grande dificuldade está em que se deve primeiro habilitar o governante a controlar o governado e, depois, obrigá-lo a controlar-se a si mesmo." As estruturas internas do governo devem ser estabelecidas de tal forma que funcionem como uma defesa contra a tendência NATURAL de que o poder venha a se tornar arbitrário e tirânico.

Sendo o homem o que é, segue-se que todo aquele que detiver o poder em suas mãos tende a dele abusar. Estas reflexões, como é sabido, fundamentam a teoria da separação dos poderes, enunciada por este autor. Apesar de se apoiar expressamente em Montesquieu, a exposição de Madison da teoria da separação dos poderes contém especificidades que merecem ser notadas.

A defesa da aplicação do princípio da separação dos poderes encontra-se construída a partir de medidas constitucionais, garantias à autonomia dos diferentes ramos de poder, postos em relação um com os outros para que possam se controlar e frear mutuamente, referidas, em última análise, às características nada virtuosas dos homens, seus interesses e ambições pessoais por acumular poder. "A ambição será incentivada para enfrentar a ambição. Os interesses pessoais serão associados aos direitos constitucionais."

Caracterizadas como a principal ameaça à sorte dos governos populares, tidas corno forças negativas, no que segue os ensinamentos de uma sólida tradição, Madison inova ao defender que a sorte dos governos populares não depende de sua eliminação, mas sim de encontrar formas de neutralizar os seus efeitos. As causas das facções encontram-se semeadas na própria natureza humana, nascendo do livre desenvolvimento de suas faculdades. A diversidade de crenças, opiniões e de distribuição da propriedade decorre da liberdade dos homens de disporem de seus próprios direitos. Vale observar que entre estes direitos, Madison destaca o da propriedade, a principal fonte diferenciadora dos homens e, por isto mesmo, a fonte mais comum e duradoura das facções.

Proteger o direito de autodeterminação dos homens, isto é, proteger a sua liberdade, é o objetivo primordial dos governos, sua razão de ser. Neste ponto encontra-se explicitado o comprometimento de Madison com o credo liberal. Busca-se constituir um governo limitado e controlado para assegurar uma esfera própria para o livre desenvolvimento dos indivíduos, em especial de suas atividades econômicas.

Se as facções são inevitáveis, o problema passa a ser o de impedir que um dos diferentes interesses ou opiniões presentes na sociedade venha a controlar o poder com vistas à promoção única e exclusiva de seus objetivos. O princípio da decisão por maioria, regra fundamental dos governos populares, passa a representar uma ameaça aos direitos das facções minoritárias. À maioria aplica-se o princípio da tendência natural ao abuso do poder quando este não encontra freios diante de si. É o que naturalmente tende a acontecer nas democracias puras, onde poucas facções se defrontam e facilmente a majoritária controla todo o poder.

Madison está a advogar a causa de uma nova espécie de governo popular, uma república representativa, desconhecida na Antiguidade e por autores como Montesquieu e Rousseau que a tomam como modelo para suas reflexões. Estes autores constroem o seu modelo ideal de governo popular a partir dos exemplos de governos populares bem-sucedidos encontrados na história greco-romana. Por isto mesmo, os tempos modernos, onde a virtude havia sido substituída pelo apego ao bem-estar material, conspiravam contra a sorte desta forma de governo. Para Madison, ao contrário, esta história é uma sucessão de experiências fracassadas, dada a fraqueza congênita das democracias puras, oferecendo-lhe um modelo absolutamente negativo. Note-se, ainda, que as facções que tem em mente e que procura tornar compatíveis com o governo republicano - como pode ser observado pela leitura dos exemplos dados no correr do texto - são originárias do desenvolvimento de uma economia moderna. Madison afirma que este cenário não só é compatível com o governo popular, como também é mais apropriado para seu sucesso. A ruptura com a tradição é completa.

A distinção entre as repúblicas e as democracias puras traz vantagens à primeira em dois pontos capitais. Primeiro, fazendo com que as funções de governo sejam delegadas a um número menor de cidadãos e, segundo, aumentando a área e número de cidadãos sob a jurisdição de um único governo. À segunda característica distintiva das repúblicas deve-se a principal contribuição para evitar o mal das facções. Sob um território mais extenso e com um número maior de cidadãos cresce o número de interesses em conflito, de tal sorte que ou não existe um interesse que reuna a maioria dos cidadãos, ou, na pior das hipóteses, será difícil que se organize para agir. Ou seja, através da multiplicação das facções chega-se à sua neutralização recíproca, tornando impossível o controle exclusivo do poder por uma facção. Impede-se, assim, que qualquer interesse particular tenha condições de suprimir a liberdade.

Por outro lado, o preço desta solução pode ser a paralisia do governo, com o choque entre vários interesses a bloquear qualquer iniciativa das partes. Isto é, a solução para o mal das facções poderia acarretar um mal maior: o não-governo. Madison não chega a tocar nesta alternativa, o que poderia levar a pensar que este seria seu objetivo. Como um liberal, seria partidário de um governo mínimo, tudo mais ficando a cargo dos particulares e resolvendo-se pelas leis do mercado. Não é o caso. Madison não é um adepto de Adam Smith. À pergunta que lança no correr de sua argumentação, "Deverão as manufaturas nacionais ser incentivadas e em que grau através de restrições aos produtos estrangeiros?", não encontra resposta em um Estado mínimo. Em um não-governo, isto é, onde não fossem decididas quais as restrições aos produtos estrangeiros, uma das partes, os proprietários de terra, sairia ganhando. A solução vislumbrada por Madison não é nem o governo mínimo, nem o não-governo. Conforme afirma, a preocupação central da legislação moderna é a de fornecer os meios para a coordenação dos diferentes interesses em conflito. Levar à coordenação dos interesses é a marca distintiva das repúblicas por oposição à violência do conflito entre facções características das democracias populares. Ante o bloqueio mútuo das partes, a coordenação aparece como a única alternativa para decisão dos conflitos, o interesse geral se impondo como a única alternativa.

Marcos Katsumi Kay - N1

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

ALBUQUERQUE, José Augusto Guilhon. Montesquieu: sociedade e poder.

ALBUQUERQUE, José Augusto Guilhon. Montesquieu: sociedade e poder In: WEFFORT, Francisco C. (org.) Os Clássicos da Política. São Paulo, Editora Ática, 2004, vol. 1.
Estrutura: O conceito de lei. Os três governos. o conceito de lei. Os três governos. Os três poderes.
Resumo:

Sua preocupação central foi a de compreender as razões da decadência das monarquias, os conflitos intensos que minaram sua estabilidade, e também os mecanismos que garantiram, por tantos séculos, sua estabilidade, e que Montesquieu identifica na noção de moderação. A moderação é a pedra de toque do funcionamento estável dos governos, e é preciso encontrar os mecanismos que a produziram nos regimes do passado e do presente para propor um regime ideal para o futuro.

Até Montesquieu, a noção de Lei compreendia três dimensões essencialmente ligadas à idéia de lei de Deus. As leis exprimiam uma certa ordem natural, resultante da vontade de Deus. Elas exprimiam também um dever ser, na medida em que a ordem das coisas estava direcionada para uma finalidade divina. Finalmente, as leis tinham uma conotação de expressão da autoridade. As leis eram simultaneamente legítimas (porque expressão da autoridade), imutáveis (porque dentro da ordem das coisas) e ideais (porque visavam uma finalidade perfeita).

Montesquieu introduz o conceito de lei no início de sua obra fundamental. Definindo lei como "relações necessárias que derivam da natureza das coisas", Montesquieu estabelece uma ponte com as ciências empíricas, e particularmente com a física newtoniana. Com isso, ele rompe com a tradicional submissão da política à teologia. É possível encontrar uniformidades, constâncias na variação dos comportamentos e formas de organizar os homens, assim como é possível encontrá-las nas relações entre os corpos físicos. Tal como é possível estabelecer as leis que regem os corpos físicos a partir das relações entre massa e movimento, também as leis que regem os costumes e as instituições são relações que derivam da natureza das coisas. Com o conceito de lei, Montesquieu traz a política para fora do campo da teologia e da crônica, e a insere num campo propriamente teórico. Estabelece uma regra de imanência que incorpora a teoria política ao campo das ciências: as instituições políticas são regidas por leis que derivam das relações políticas. As leis que regem as instituições políticas, para Montesquieu, são relações entre as diversas classes em que se divide a população, as formas de organização econômica, as formas de distribuição do poder etc.

Mas o objeto de Montesquieu não são as leis que regem as relações entre os homens em geral, mas as leis positivas, isto é, as leis e instituições criadas pelos homens para reger as relações entre os homens. Montesquieu observa que, ao contrário dos outros seres, os homens têm a capacidade de se furtar às leis da razão (que deveriam reger suas relações), e além disso adotam leis escritas e costumes destinados a reger os comportamentos humanos. E têm também a capacidade de furtar-se igualmente às leis e instituições.

Os pensadores políticos que precedem Montesquieu (e Rousseau, que o sucede) são teóricos do Contrato Social (ou do Pacto), estão fundamentalmente preocupados com a natureza do poder político, e tendem a reduzir a questão da estabilidade do poder à sua natureza. Ao romper com o estado de natureza (onde a ameaça de guerra de todos contra todos põe em risco a sobrevivência da humanidade) o pacto que institui o estado de sociedade deve ser tal que garanta a estabilidade contra o risco de anarquia ou de despotismo.

Ele vai considerar duas dimensões do funcionamento político das instituições: a natureza e o princípio de governo. A natureza do governo diz respeito a quem detém o poder: na monarquia, um só governa, através de leis fixas e instituições; na república, governa o povo no todo ou em parte (repúblicas aristocráticas); no despotismo, governa a vontade de um só. As análises minuciosas de Montesquieu sobre as "leis relativas à natureza do governo" deixam claro que se trata de relações entre as instâncias de poder e a forma como o poder se distribui na sociedade, entre os diferentes grupos e classes da população.

O princípio de governo é a paixão que o move, é o modo de funcionamento dos governos, ou seja, como o poder é exercido. São três os princípios, cada um correspondendo em tese a um governo. Em tese, porque, segundo Montesquieu, ele não afirma que "toda república é virtuosa, mas sim que deveria sê-lo" para poder ser estável. Paixão que tem três modalidades: o princípio da monarquia é a honra; o da república é a virtude; e o do despotismo é o medo. A monarquia não precisa da virtude, e mesmo as paixões desonestas da nobreza a favorecem. Nessa curiosa conjunção entre o princípio e a natureza da monarquia fica claro que ela apenas repousa em instituições. É possível agora redefinir com nossas próprias palavras a natureza dos três governos: o despotismo é o governo da paixão; a república é o governo dos homens; a monarquia é o governo das instituições.

O despotismo está condenado à autofagia: ele leva necessariamente à desagregação ou às rebeliões. A república não tem princípio de moderação: ela depende de que os homens mais virtuosos contenham seus próprios apetites e contenham os demais. Na monarquia, são as instituições que contêm os impulsos da autoridade executiva e os apetites dos poderes intermediários. Na monarquia, em outras palavras, o poder está dividido e, portanto, o poder contraria o poder. Essa capacidade de conter o poder, que só outro poder possui, é a chave da moderação dos governos monárquicos.

Para Montesquieu, a república é o regime de um passado em que as cidades reuniam um pequeno grupo de homens moderados pela própria natureza das coisas: uma certa igualdade de riquezas e de costumes ditada pela escassez. Com o desenvolvimento do comércio, o crescimento das populações e o aumento e a diversificação. das riquezas ela se torna inviável: numa sociedade dividida em classes a virtude (cívica) não prospera. O despotismo seria a ameaça do futuro, na medida em que as monarquias européias aboliam os privilégios da nobreza, tornando absoluto o poder do executivo. Apenas a monarquia, isto é, o governo das instituições, seria o regime do presente. Deve ficar claro que Montesquieu não defendia a pura e simples restauração dos privilégios nobiliárquicos. Trata-se de procurar, naquilo que confere estabilidade à monarquia, algo que possa substituir o efeito moderador que resultava do papel da nobreza.

Montesquieu vai à Inglaterra, estuda in loco as bases constitucionais da liberdade. Trata-se de uma análise minuciosa da estrutura bicameral da Parlamento britânico - a Câmara Alta, constituída pela nobreza, e a Câmara dos Comuns, eleita por voto popular - e das funções dos três poderes, executivo, legislativo e judiciário. Na sua versão mais divulgada, a teoria dos poderes é conhecida como a separação dos poderes ou a eqüiputência. De acordo com essa versão, Montesquieu estabeleceria, como condição para o Estado de direito, a separação dos poderes executivo, legislativo e judiciário e a independência entre eles. A idéia de equivalência consiste em que essas três funções deveriam ser dotadas de igual poder.

Vale ressaltar, entretanto, que seria curioso buscar a separação e independência entre legislativo e executivo justamente no regime britânico. Montesquieu ressalta, aliás, a interpenetração de funções judiciárias, legislativas e executivas. Basta lembrar a prerrogativa de julgamento pelos pares nos casos de crimes políticos para perceber que a separação total não é necessária nem conveniente. A eqüipotência, ou equivalência dos poderes também é refutada implicitamente por Montesquieu, quando afirma que o judiciário é um poder nulo, "os juízes (são)... a boca que pronuncia as palavras da lei".

Montesquieu mostra claramente que há uma imbricação de funções e uma interdependência entre o executivo, o legislativo e o judiciário. A separação de poderes da teoria de Montesquieu teria, portanto, outra significação. Trata-se, dentro dessa ordem de idéias, de assegurar a existência de um poder que seja capaz de contrariar outro poder. Isto é, trata-se de encontrar uma instância independente capaz de moderar o poder do rei (do executivo). É um problema político, de correlação de forças, e não um problema jurídico-administrativo, de organização de funções,

A estabilidade do regime ideal está em que a correlação entre as forças reais da sociedade possa se expressar também nas instituições políticas. Isto é, seria necessário que o funcionamento das instituições permitisse que o poder das forças sociais contrariasse e, portanto, moderasse o poder das demais.

Lida desta forma, a teoria dos poderes de Montesquieu se torna vertiginosamente contemporânea. Ela se inscreve na linha direta das teorias democráticas que apontam a necessidade de arranjos institucionais que impeçam que alguma força política possa a priori prevalecer sobre as demais, reservando-se a capacidade de alterar as regras depois de jogado o jogo político.

Marcos Katsumi Kay - N1

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

NASCIMENTO, Milton Meira do. Rousseau: da servidão à liberdade.

NASCIMENTO, Milton Meira do. Rousseau: da servidão à liberdade. In: WEFFORT, Francisco C. (org.) Os Clássicos da Política. São Paulo, Editora Ática, 2004, vol. 1.
Estrutura: Curriculum de um cidadão de Genebra. O pacto social. A vontade e a representação.
Resumo:

Os temas mais candentes da filosofia política clássica, tais como a passagem do estado de natureza ao estado civil, o contrato social, a liberdade civil, o exercício da soberania, a distinção entre o governo e o soberano, o problema da escravidão, o surgimento da propriedade, serão tratados por Rousseau de maneira exaustiva, de um lado, retomando as reflexões dos autores da tradicional escola do direito natural, como Grotius, Pufendorf e Hobbes e, de outro, não poupando críticas pontuais a nenhum deles, o que o colocará, no século XVIII, em lugar de destaque entre os que inovaram a forma de se pensar a política, principalmente ao propor o exercício da soberania pelo povo, como condição primeira para a sua libertação. E, certamente, por isso mesmo, os protagonistas da revolução de 1789 o elegerão como patrono da Revolução ou como o primeiro revolucionário.

Textos do Contrato social e do Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, constituem uma unidade temática importante e os demais escritos, de certa maneira, aprofundam e explicitam as questões que já haviam sido abordadas naquelas duas obras. A chave para se entender a articulação entre essas duas obras está no primeiro parágrafo no capítulo I, do livro I, do Contrato: "O homem nasce livre, e por toda parte encontra-se aprisionado. O que se crê senhor dos demais, não deixa de ser mais escravo do que eles. Como se deve esta transformação? Eu o ignoro: o que poderá legitimá-la? Creio poder resolver esta questão". Ora, a trajetória do homem, da sua condição de liberdade no estado de natureza, até o surgimento da propriedade, com todos os inconvenientes que daí surgiram, foi descrita no Discurso sobre a origem da desigualdade. Nesta obra, o objetivo de Rousseau é o de construir a história hipotética da humanidade, deixando de lado os fatos, procedimento semelhante ao que outros filósofos já haviam feito no século. XVII. Espinosa e Hobbes tomaram de empréstimo, da geometria, o método para a análise dos problemas da moral e da política.

Ao declarar que ignora o processo de transformação do homem, da liberdade à servidão, nosso autor se refere aos fatos reais, que seriam bem difíceis de serem verificados, uma vez que os vestígios deixados pelos homens são insuficientes para que se tenha uma idéia precisa de toda a sua história. Esta, porém, pode ser construída hipoteticamente e demonstrada através de argumentos racionais. Qual seria pois a história hipotética da humanidade? Precisamente, a que culmina com a legitimação da desigualdade, quando o rico apresenta a proposta do pacto.

É a partir do reconhecimento dessa situação que Rousseau inicia o Contrato social, afirmando que "o homem nasce livre e em toda parte encontra-se a ferros", mas seu projeto, desta vez, muda de nível. Agora não se trata mais de reconstruir hipoteticamente a história da humanidade, mas de apresentar o dever-ser de toda ação política. Quando Rousseau se pergunta como ocorreu a mudança da liberdade para a servidão e responde imediatamente que não sabe, mas que pode resolver o problema da sua legitimidade, é preciso entender que não é o caso de legitimar a servidão, pois isto ele denunciara no Discurso, na passagem que acabamos de citar. O que pretende estabelecer no Contrato social são as condições de possibilidade de um pacto legítimo, através do qual os homens, depois de terem perdido sua liberdade natural, ganhem, em troca, a liberdade civil.

No processo de legitimação do pacto social, o fundamental é a condição de igualdade das partes contratantes.

A situação é bem diferente daquela descrita no Discurso sobre a origem da desigualdade. Agora, ninguém sai prejudicado, porque o corpo soberano que surge após o contrato é o único a determinar o modo de funcionamento da máquina política, chegando até mesmo a ponto de poder determinar a forma de distribuição da propriedade, como uma de suas atribuições possíveis, já que a alienação da propriedade de cada parte contratante foi total e sem reservas.

Desta vez, estariam dadas todas as condições para a realização da liberdade civil, pois o povo soberano, sendo ao mesmo tempo parte ativa e passiva, isto é, agente do processo de elaboração das leis e aquele que obedece a essas mesmas leis, tem todas as condições para se constituir enquanto um ser autônomo, agindo por si mesmo.

Nestas condições haveria uma conjugação perfeita entre a liberdade e a obediência. Obedecer à lei que se prescreve a si mesmo é um ato de liberdade. Fórmula que seria desenvolvida mais tarde por Kant. Um povo, portanto, só será livre quando tiver todas as condições de elaborar suas leis num clima de igualdade, de tal modo que a obediência a essas mesmas leis signifique, na verdade, uma submissão à deliberação de si mesmo e de cada cidadão, como partes do poder soberano. Isto é, uma submissão à vontade geral e não à vontade de um indivíduo em particular ou de um grupo de indivíduos.

Tal é a condição primeira de legitimidade da vida política, ou seja, aquela que marca a sua fundação através de um pacto legítimo, onde a alienação é total e onde a condição de todos é a de igualdade. Este processo de legitimaçao, da fundação do corpo político, deverá estender-se também para a máquina política em funcionamento. Não basta que tenha havido um momento inicial de legitimidade. É necessário que ela permaneça ou então que se refaça a cada instante. Para que o corpo político se desenvolva, não basta o ato de vontade fundador da associação, é preciso que essa vontade se realize: Os fins da constituição da comunidade política precisam ser realizados. Donde a necessidade de se criarem os mecanismos adequados para a realização desses fins. Essa tarefa caberá ao corpo administrativo do Estado. Para Rousseau, antes de mais nada, impõe-se definir o governo, o corpo administrativo do Estado, como funcionário do soberano, como um órgão limitado pelo poder do povo e não como um corpo autônomo ou então como o próprio poder máximo, confundindo-se neste caso com o soberano.

Se a administração é um órgão importante para o bom funcionamento da máquina política, qualquer forma de governo que se venha a adotar terá que submeter-se ao poder soberano do povo.

Neste sentido, dentro do esquema de Rousseau, as formas clássicas de governo, a monarquia, a aristocracia e a democracia, teriam um papel secundário dentro do Estado e poderiam variar ou combinar-se de acordo com as características do país, tais como a extensão do território, os costumes do povo, suas tradições etc. Mesmo sob um regime monárquico, segundo Rousseau, o povo pode manter-se como soberano, desde que o monarca se caracterize corno funcionário do povo.

Rousseau, depois de frisar o caráter do governo como um corpo submisso à autoridade soberana, depois de reconhecer a sua necessidade, passa a enumerar os riscos da sua instituição, sua tendência a degenerar. "Assim como a vontade particular age sem cessar contra a vontade geral, o governo despende um esforço contínuo contra o soberano."

O governo tende a ocupar o lugar do soberano, a constituir-se não como um corpo submisso, como um funcionário, mas como o poder máximo, invertendo portamo os papéis. Ao invés de submeter-se ao povo, o governo tende a subjugá-lo.

Uma outra instituição que merece muita atenção por parte de Rousseau é a da representação política. A força de suas expressões poderia dar a entender uma certa intransigência quanto a um mecanismo que ficaria consagrado pelas democracias modernas. No entanto, para permanecer coerente com seus princípios, sempre na exigência de legitimidade da ação política, Rousseau não admite a representação ao nível da soberania. Uma vontade não se representa. "No momento em que um povo se di representantes, não é mais livre, não mais existe." O exercício da vontade geral através de representantes significa uma sobreposição de vontades. Ninguém pode querer por um outro. Quando isto ocorre, a vontade de quem a delegou não mais existe ou não mais está sendo levada em consideração. Donde se segue que a soberania é inalienável. Mas Rousseau reconueceria a necessidade de representantes a nível de governo. E, se já era necessária uma grande vigilância em relação ao executivo, por sua tendência a agir contra a autoridade soberana, não se deve descuidar dos representantes, cuja tendência é a de agirem em nome de si mesmos e não em nome daqueles que representam. Para não se perpetuarem em suas funções, seria conveniente que fossem trocados com uma certa freqüência.

Para concluir nossa análise em relação entre o Discurso sobre a origem da desigualdade e o Contrato social, poderíamos elucidar algumas questões que muito freqüentemente têm aparecido, quando se trata do pensamento político de Rousseau. Em que medida, ao estabelecer um dever-ser de toda ação política, ou seja, as condições de possibilidade de uma ação política legítima, o autor estaria propondo um outro tipo de sociedade e dessa maneira estaria acreditando numa ação política transformadora? Da servidão, teríamos condições de desenvolvermos um projeto visando à recuperação da liberdade? A considerarmos os próprios textos de Rousseau, deparamo-nos com uma certa incredulidade quanto à recuperação da liberdade por povos que já a perderam completamente. Sua visão da história é pessimista. Quando chamado a atuar na política concreta, quando convidado a elaborar o projeto de constituição para a Córsega e a redigir a reforma das leis polonesas, Rousseau será bastante moderado e usará sempre a máxima que já havia enunciado no Contrato social: a primeira tarefa do legislador é conhecer muito bem o povo para o qual irá redigir as leis. Não existe uma ação política boa em si mesma em termos absolutos. Cada situação exige um tratamento especial. A ação política será mesmo comparada à ação do médico diante do paciente. Seu papel é prolongar a vida ao máximo, mas não poderá impedir que o corpo morra, uma vez que tiver completado o seu ciclo vital. Fazer com que um povo, da servidão recupere a liberdade, é o mesmo que recuperar a vida de um doente prestes a morrer. Tal façanha não ocorre todos os dias, mas só mesmo por um milagre. Uma reviravolta desse porte só acontece uma vez na vida de um povo.

Foi assim que os protagonistas da Revolução Francesa de 1789 compreenderam o momento extraordinário que estavam vivendo. A febre e o fervor revolucionários faziam com que cada militante se sentisse como que saindo das cinzas, da morte para a vida. E lá estavam eles a empunhar o Contrato social corno uma espécie de manual de ação política e a eleger o seu autor como o primeiro revolucionário.

Não se deve, porém, no pensamento político de Rousseau, tomar a exceção como regra de toda prática política. As revoluções são exceções na vida dos povos. O que há de fascinante na Revolução Francesa e na interpretação que uma grande parte de revolucionários fazia do pensamento político de Rousseau é que, a partir daquela data, tudo o mais se ilumina a partir da ótica dos revolucionários. A exceção virou regra. Todo o Contrato social, de uma análise cuidadosa do modo de funcionamento da engrenagem política e das condições de sua legitimidade, transformou-se num manual prático de política. Seja como for, se a leitura que os revolucionários fizeram de Rousseau é possível, é bom não nos esquecermos de que existe um outro Rousseau, que teria muito a dizer aos povos, não em épocas de grandes transtornos e convulsões sociais, como ocorre nas revoluções, mas em tempos normais, ou pelo menos no vigor das leis.

Marcos Katsumi Kay - N1

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

MELLO, Leonel Itaussu Almeida. John Locke e o individualismo liberal.

MELLO, Leonel Itaussu Almeida. John Locke e o individualismo liberal. In: WEFFORT, Francisco C.. (org.) Os Clássicos da Política. São Paulo, Editora Ática, 2004, vol. 1.
Estrutura: As revoluções inglesas. John Locke, O individualista liberal. Os dois tratados sobre o governo civil. O estado de natureza. A teoria da propriedade. o contrato social. A sociedade política ou civil. o direito de resistência. Conclusão.
Resumo:

Locke sustenta a tese de que nem a tradição nem a força, mas apenas o consentimento expresso dos governados é a única fonte do poder político legítimo. No plano teórico, constitui um importante marco da história do pensamento político, e, a nível histórico concreto, exerceu enorme influência sobre as revoluções liberais da época moderna. O modelo jusnaturalista de Locke é, em suas linhas gerais, semelhante ao de Hobbes: ambos partem do estado de natureza que, pela mediação do contrato social, realiza a passagem para o estado civil. Existe, contudo, grande diferença na forma como Locke, diversamente de Hobbes, concebe especificamente cada um dos termos do trinômio estado natural/contrato social e estado civil.

Locke afirma ser a existência do indivíduo anterior ao surgimento da sociedade e do Estado. Na sua concepção individualista, os homens viviam originalmente num estágio pré-social e pré-político, caracterizado pela mais perfeita liberdade e igualdade, denominado estado de natureza. O estado de natureza era, segundo Locke, uma situação real e historicamente determinada pela qual passara, ainda que em épocas diversas, a maior parte da humanidade. Esse estado de natureza diferia do estado de guerra hobbesiano; baseado na insegurança e na violência, por ser um estado de relativa paz, concórdia e harmonia.

Nesse estado pacífico os homens já eram dotados de razão e desfrutavam da propriedade que, numa primeira acepção genérica utilizada por Locke, designava simultaneamente a vida, a liberdade e os bens como direitos naturais do ser humano. Locke utiliza também a noção de propriedade numa segunda acepção que, em sentido estrito, significa especificamente a posse de bens móveis ou imóveis. A teoria da propriedade de Locke também difere bastante da de Hobbes. Para Locke a propriedade já existe no estado de natureza e, sendo uma instituição anterior à sociedade, é um direito natural do indivíduo que não pode ser violado pelo Estado.

O homem era naturalmente livre e proprietário de sua pessoa e de seu trabalho. Como a terra fora dada por Deus em comum a todos os homens, ao incorporar seu trabalho à matéria bruta que se encontrava em estado natural o homem tornava-a sua propriedade privada, estabelecendo sobre ela um direito próprio do qual estavam excluídos todos os outros homens. O trabalho era o fundamento originário da propriedade.

Se a propriedade era instituída pelo trabalho, este, por sua vez, impunha limitações à propriedade. Inicialmente, quando "todo o mundo era como a América", o limite da propriedade era fixado pela capacidade de trabalho do ser humano. Depois, o aparecimento do dinheiro alterou essa situação, possibilitando a troca de coisas úteis, mas perecíveis, por algo duradouro, convencionalmente aceito pelos homens. Com o dinheiro surgiu o comércio e também uma nova forma de aquisição da propriedade, poderia ser adquirida pela compra. O uso da moeda levou à concentração da riqueza e à distribuição desigual dos bens entre os homens. Esse foi, para Locke, o processo que determinou a passagem da propriedade limitada, baseada no trabalho, à propriedade ilimitada, fundada na acumulação possibilitada pelo advento do dinheiro.

O estado de natureza, relativamente pacífico, não está isento de inconvenientes, como a violação da propriedade (vida, liberdade e bens) que, na falta de lei estabelecida, de juiz imparcial e de força coercitiva para impor a execução das sentenças, coloca os indivíduos singulares em estado de guerra uns contra os outros. É a necessidade de superar esses inconvenientes que leva os homens a se unirem e estabelecerem livremente entre si o contrato social, que realiza a passagem do estado de natureza para a sociedade política ou civil. Esta é formada por um corpo político único, dotado de legislação, de judicatura e da força concentrada da comunidade: Seu objetivo precípuo é a preservação da propriedade e a proteção da comunidade dos perigos internos e externos.

O contrato social de Locke em nada se assemelha ao contrato hobbesiano. Em Hobbes, os homens firmam entre si um pacto de submissão pelo qual, visando a preservação de suas vidas, transferem a um terceiro (homem ou assembléia) a força coercitiva da comunidade, trocando voluntariamente sua liberdade pela segurança do Estado-Leviatã. Em Locke, o contrato social é um pacto de consentimento em que os homens concordam livremente em formar a sociedade civil para preservar e consolidar ainda mais os direitos que possuíam originalmente no estado de natureza. No estado civil os direitos naturais inalienáveis do ser humano à vida, à liberdade e aos bens estão melhor protegidos sob o amparo da lei, árbitro da força comum de um corpo político unitário. Assim, a passagem do estado de natureza para a sociedade política ou civil (Locke não distingue entre ambas) se opera quando, através do contrato social, os indivíduos singulares dão seu consentimento unânime para a entrada no estado civil.

Estabelecido o estado civil, o passo seguinte é a escolha pela comunidade de uma determinada forma de governo. Na escolha do governo, a unanimidade do contrato originário cede lugar ao principio da maioria, segundo o qual prevalece a decisão majoritária e, simultaneamente, são respeitados os direitos da minoria. Na concepção de Locke, porém, qualquer que seja a sua forma, "todo o governo não possui outra finalidade além da conservação da propriedade".

Definida a forma de governo, cabe igualmente à maioria escolher o poder legislativo, que Locke, conferindo-lhe uma superioridade sobre os demais poderes, denomina de poder supremo. Ao legislativo se subordinam tanto o poder executivo, confiado ao príncipe, como o poder federativo, encarregado das relações exteriores (guerra, paz, alianças e tratados). Existe uma clara separação entre o poder legislativo, de um lado, e os poderes executivo e federativo, de outro lado, os dois últimos podendo, inclusive, ser exercidos pelo mesmo magistrado.

Em suma, o livre consentimento dos indivíduos para o estabelecimento da sociedade, o livre consentimento da comunidade para a formação do governo, a proteção dos direitos de propriedade pelo governo, o controle do executivo pelo legislativo e o controle do governo pela sociedade, são, para Locke, os principais fundamentes do estado civil.

No que diz respeito às relações entre o governo e a sociedade, Locke afirma que, quando o executivo ou o legislativo violam a lei estabelecida e atentam contra a propriedade, o governo deixa de cumprir o fim a que fora destinado, tornando-se ilegal e degenerando em tirania. O que define a tirania é o exercício do poder para além do direito, visando o interesse próprio e não o bem público ou comum. Com efeito, a violação deliberada e sistemática da propriedade (vida, liberdade e bens) e o uso contínuo da força sem amparo legal colocam o governo em estado de guerra contra a sociedade e os governantes em rebelião contra os governados, conferindo ao povo o legítimo direito de resistência à opressão e à tirania. Segundo Locke, a doutrina da legitimidade da resistência ao exercício ilegal do poder reconhece ao povo, quando este não tem outro recurso ou a quem apelar para sua proteção, o direito de recorrer a força para a deposição do governo rebelde. O direito do povo à resistência é legítimo tanto para defender-se da opressão de um governo tirânico como para libertar-se do domínio de uma nação estrangeira.

Os direitos naturais inalienáveis do indivíduo à vida, à liberdade e à propriedade constituem para Locke o cerne do estado civil de é considerado por isso o pai do individualismo liberal. Através dos princípios de um direito natural preexistente ao Estado, de um Estado baseado no consenso, de subordinação do poder executivo ao poder legislativo, de um poder limitado, de direito de resistência, Locke expôs as diretrizes fundamentais do Estado liberal. Locke forneceu a posteriori a justificação moral, política e ideológica para a Revolução Gloriosa e para a monarquia parlamentar inglesa. Locke influenciou a revolução norte-americana, onde a declaração de independência foi redigida e a guerra de libertação foi travada em termos de direitos naturais e de direito de resistência para fundamentar a ruptura com o sistema colonial britânico. Locke influenciou ainda os filósofos iluministas franceses, principalmente Voltaire e Montesquieu e, através deles, a Grande Revolução de 1789 e a declaração de direitos do homem e do cidadão.

Marcos Katsumi Kay - N1

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

RIBEIRO, Renato Janine. Hobbes: o medo e a esperança.

RIBEIRO, Renato Janine. Hobbes: o medo e a esperança. In: WEFFORT, Francisco C. (org.) Os Clássicos da Política. São Paulo, Editora Ática, 2004, vol. 1.
Estrutura: Igualdade e liberdade. o Estado, o medo e a propriedade. Um pensador maldito.
Resumo:

Hobbes é um contratualista, quer dizer, um daqueles filósofos que, entre o século XVI e o XVIII (basicamente), afirmaram que a origem do Estado e/ou da sociedade está num contrato: os homens viveriam, naturalmente, sem poder e sem organização - que somente surgiriam depois de um pacto firmado por eles, estabelecendo as regras de convívio social e de subordinação política.

Ele não afirma que os homens são absolutamente iguais, mas que são iguais o bastante para que nenhum possa triunfar de maneira total sobre outro. Decorre que geralmente o mais razoável para cada um é atacar o outro, ou para vencê-lo, ou simplesmente para evitar um ataque possível: assim a guerra se generaliza entre os homens. Por isso, se não há um Estado controlando e reprimindo, fazer a guerra contra os outros é a atitude mais racional que eu posso adotar (é preciso enfatizar esse ponto, para ninguém pensar que o "homem lobo do homem", em guerra contra todos, é um anormal; suas ações e cálculos são os únicos racionais, no estado de natureza). Hobbes deduz que no estado de natureza todo homem tem direito a tudo.

Para Hobbes, o homem é o indivíduo. O indivíduo hobbesiano não almeja tanto os bens, mas a honra. Entre as causas da violência uma das principais reside na busca da glória, quando os homens se batem "por ninharias, como uma palavra, um sorriso, uma diferença de opinião, e qualquer outro sinal de desprezo, quer seja diretamente dirigido a suas pessoas, quer indiretamente a seus parentes, seus amigos, sua nação, sua profissão ou seu nome".

É preciso que exista um Estado dotado da espada, armado, para forçar os homens ao respeito. O poder de Estado tem que ser pleno. O Estado medieval não conhecia poder absoluto, nem soberania - os poderes do rei eram contrabalançados pelos da nobreza, das cidades, dos Parlamentos. No Estado deve haver um poder soberano, isto é, um foco de autoridade que possa resolver todas as pendências e arbitrar qualquer decisão. Hobbes desenvolve essa idéia, e monta um Estado que é condição para existir a própria sociedade. A sociedade nasce com o Estado.

Não existe primeiro a sociedade, depois o poder ("o Estado"). Porque, se há governo, é justamente para que os homens possam conviver em paz: sem governo, nós nos matamos uns aos outros. Por isso, o poder do governante tem que ser ilimitado. Pois, se ele sofrer alguma limitação, se o governante tiver de respeitar tal ou qual obrigação (por exemplo. tiver que ser justo) - então quem irá julgar se ele está sendo ou não justo? Quem julgar terá também o poder de julgar se o príncipe continua príncipe ou não - e portanto será, ele que julga, a autoridade suprema. Não há alternativa: ou o poder é absoluto, ou continuamos na condição de guerra, entre poderes que se enfrentam. O soberano não assina o contrato - este é firmado apenas pelos que vão se tornar súditos, não pelo beneficiário. No momento do contrato não existe ainda soberano, que só surge devido ao contrato. Ele se conserva fora dos compromissos, e isento de qualquer obrigação.

Nesse Estado, em que o poder é absoluto, que papel caberão à liberdade e à igualdade, estes grandes valores que aprendemos a respeitar? O que Hobbes faz é justamente desmontar o valor retórico que atribuímos a palavras capazes de gerar tanto entusiasmo - e, dirá ele; tanta ambição, descontentamento e guerra. A igualdade é o fator que leva à guerra de todos. Dizendo que os homens são iguais, Hobbes não faz uma proclamação revolucionária contra o Antigo Regime, simplesmente afirma que dois ou mais homens podem querer a mesma coisa, e por isso todos vivemos em tensa competição. E a liberdade? Hobbes vai defini-la de modo que também deixa de ser um valor.

Hobbes começa reduzindo a liberdade a uma determinação física, aplicável a qualquer corpo. Com isso ele praticamente elimina o valor da liberdade como um clamor popular, como um princípio pelo qual homens lutam e morrem.

Resta porém, uma liberdade ao homem: Quando o indivíduo firmou o contrato social, renunciou ao seu direito de natureza, isto é, ao fundamento jurídico da guerra de todos. É que, neste direito, o meio (fazer o que julgasse mais conveniente) contradizia o fim (preservar a própria vida). O homem percebeu que, como todos tinham esse direito tanto quanto ele, o resultado só podia ser a guerra - e a vida do homem [era] solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta. Mas, dando poderes ao soberano, a fim de instaurar a paz, o homem só abriu mão de seu direito para proteger a sua própria vida. Se esse fim não for atendido pelo soberano, o súdito não lhe deve mais obediência - não porque o soberano violou algum compromisso (isso é impossível, pois o soberano não prometeu nada), mas simplesmente porque desapareceu a razão que levava o súdito a obedecer. Esta é a verdadeira liberdade do súdito.

O soberano não perde a soberania se não atende aos caprichos de cada súdito. Mas, se deixa de proteger a vida de determinado indivíduo, este indivíduo (e só ele) não lhe deve mais sujeição. Os outros não podem aliar-se ao desprotegido, porque o governante continua a protegê-los. E pouco importa se o soberano fere o ex-súdito tendo ou não razão (afinal, ninguém pode julgar o soberano).

Mas esse Estado hobbesiano continua marcado pelo medo. O soberano governa pelo temor que inflige a seus súditos. Sem medo, ninguém abriria mão de toda a liberdade que tem naturalmente; se não temesse a morte violenta, que homem renunciaria ao direito que possui?

Devemos, porém, matizar o medo que há no Estado hobbesiano. Primeiro, o Leviatã não aterroriza. Terror existe no estado de natureza, quando vivo no pavor de que meu suposto amigo me mate. Já o poder soberano apenas mantém temerosos os súditos, que agora conhecem as linhas gerais do que devem seguir para não incorrer na ira do governante. Segundo, o indivíduo bem comportado dificilmente terá problemas com o soberano. E, terceiro, o Estado não se limita a deter a morte violenta. Não é produto apenas do medo à morte - se entramos no Estado é também com uma esperança (em filosofia, o medo e a esperança são um velho par) de ter vida melhor e mais confortável.

O conforto, em grande parte, deve-se à propriedade. A sociedade burguesa, que no tempo de Hobbes já luta para se afirmar, estabelece a autonomia do proprietário para fazer com seu bem o que bem entenda. Na Idade Média, a propriedade era um direito limitado, porque havia inúmeros costumes e obrigações que a controlavam: O senhor de terras não podia impedir o pobre de colher espigas, ou frutas, na proporção necessária para saciar a fome. Se havia um servo ligado à gleba, nem este podia deixá-la, nem o senhor podia expulsá-lo para dar outro uso à terra. Nos tempos modernos, o proprietário adquire o direito não só ao uso do bem e a seus frutos, mas também ao abuso: o direito de alienar o bem, de destruí-lo, vendê-lo ou dá-lo.

Hobbes reconhece o fim das velhas limitações feudais à propriedade - e nisso ele está de acordo com as classes burguesas, empenhadas em acabar com os direitos das classes populares à terra comunal ou privada - mas, ao mesmo tempo, estabelece um limite muito forte à pretensão burguesa de autonomia: as terras e bens estão controlados pelo soberano.

E aqui podemos entender por que Hobbes é, com Maquiavel e em certa medida Rousseau, um dos pensadores mais "malditos" da história da filosofia política - pois, no século XVII, o termo "hobbista" é quase tão ofensivo quanto "maquiavélico".

Não é só porque apresenta o Estado como monstro frio e o homem como belicoso, rompendo com a confortadora imagem aristotélica do bom governante e do indivíduo de boa natureza. Não é só porque subordina a religião ao poder político. Mas é, também, porque nega um direito natural ou sagrado do indivíduo à sua propriedade.

No seu tempo, e ainda hoje, a burguesia vai procurar fundar a propriedade privada num direito anterior e superior ao Estado: por isso ela endossará Locke, dizendo que a finalidade do poder público consiste em proteger a propriedade. Um direito aos bens que dependa do beneplácito do governante vai frontalmente contra a pretensão da burguesia a controlar, enquanto classe, o poder de Estado; e, como isso é o que vai acontecer na Inglaterra após a Revolução Gloriosa (1688), o pensamento hobbesiano não terá campo de aplicação em seu próprio país, nem em nenhum outro.

O contrato produz dois resultados importantes. Primeiro, o homem é o artífice de sua condição, de seu destino, e não Deus ou a natureza. Segundo, o homem pode conhecer tanto a sua presente condição miserável quanto os meios de alcançar a paz e a prosperidade. Esses dois efeitos, embora a via do contrato tenha sido abandonada na filosofia política posterior ao século XVIII, continuam inspirando o pensamento sobre o poder e as relações sociais.

Marcos Katsumi Kay - N1

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

NICOLAU, Jairo et al. Eleições e Partidos. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2003.

NICOLAU, Jairo et al. Eleições e Partidos. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2003. p. 11-37.
Estrutura: Notas sobre as eleições de 2002 e o sistema partidário brasileiro. Partidos em carne e osso: votos e deputados nas eleições de 2002.
Resumo:

Notas sobre as eleições de 2002 e o sistema partidário brasileiro (Jairo Nicolau). A chegada ao Executivo Federal de um partido de esquerda, pela primeira vez desde que este foi fundado em 1985; o fato de que o PFL tenha ficado na oposição e a vitória do PT nas eleições para a Câmara dos Deputados. Sem mencionar o simbolismo que envolve a vitória de Luis Inácio Lula da Silva.

Entretanto, um aspecto, em particular, não foi alterado pelas eleições de 2002: a alta fragmentação do sistema partidário. Por outro lado, nas eleições para presidente a dispersão entre os candidatos tem sido muito menor do que a das eleições parlamentares.

Um desafio é entender por que diversos partidos importantes têm se recusado a apresentar candidatos à Presidência, preferindo participar de coligações com outros, ou simplesmente não concorrer. Algumas hipóteses podem ser sugeridas. A primeira decorre da estrutura fortemente descentralizada dos partidos brasileiros. Como as unidades da federação são os distritos eleitorais na eleição de quatro dos sete cargos eletivos (deputado federal, deputado estadual, governador e senador) é natural que a política estadual tenha centralidade no sistema político brasileiro. Algumas lideranças partidárias são importantes no âmbito estadual, mas incapazes de se projetarem como lideranças nacionais. Conseqüentemente, fazem todos os cálculos eleitorais de forma a priorizar a sobrevivência política no estado de origem, deixando em segundo plano as disputas políticas no âmbito nacional. A segunda possível explicação para o reduzido número de competidores nas eleições presidenciais pode derivar do alto custo das campanhas. Como o financiamento de campanha é obrigado quase exclusivamente no meio empresarial só os candidatos com o mínimo de viabilidade eleitoral garantem recursos para fazerem uma campanha minimamente competitiva.

Além dos fatores conectados diretamente ao sistema eleitoral (efeitos mecânicos e psicológicos) o número de eleitores numa eleição presidencial pode ser afetado por fatores exógenos (a natureza dos partidos, o federalismo e o custo das campanhas).

Qual o impacto dos estímulos de concentração nas eleições presidenciais e dispersão nas eleições para o Legislativo?

É importante lembrar ainda que em cada eleição presidencial os partidos que concorrem mobilizam seus técnicos para a elaboração de um programa de governo, tarefa que acaba contribuindo para que o partido seja obrigado a apresentar uma convergência mínima em termos programáticos.

As três últimas eleições para presidente mostram que o sistema representativo brasileiro opera com duas esferas políticas relativamente autônomas. De um lado, a alta fragmentação nas eleições para a Câmara dos Deputados. De outro, a concentração da disputa presidencial em torno de um número reduzido de competidores

Essa combinação afeta a capacidade de o presidente formar maioria no Legislativo, devido a alta fragmentação partidária, a possibilidade de partido do presidente obter maioria absoluta das cadeiras na Câmara dos Deputados é muito reduzida

Em quase duas décadas do atual ciclo democrático brasileiro, praticamente não tem havido grandes conflitos entre os Poderes Executivo e Legislativo no Brasil, não obstante o fato de o país utilizar uma combinação condenada pela literatura como a pior possível: representação proporcional para a Câmara dos Deputados e eleição majoritária para o Executivo. Talvez o segredo da eficiência do sistema representativo brasileiro deva ser buscado na natureza dos partidos. Com exceção do PT, os principais partidos são pragmáticos e pouco ideológicos. Independentemente do partido do presidente, se este é orientado na direção do centro do espectro político, os outros partidos sempre têm se disposto a cooperar.

Partidos em carne e osso: votos e deputados nas eleições de 2002 (André Marenco dos Santos). Para os resultados eleitorais de 2002, os elementos para uma aferição de consistência adquirida pelo sistema partidário brasileiro, após quatro disputa presidenciais e cinco legislativas, desde a redemocratização das instituições públicas, a expectativa que informa esta análise, consiste na suposição de que partidos representam organizações consolidadas quando são capazes de produzir lealdades estáveis junto a eleitores e a candidatos e a carreiras políticas.

Votos estáveis e fidelidade partidária revelam, assim, a presença de organizações partidárias capazes de agenciar a oferta de representação política.

O quociente elevado dessa competição impõe – e candidatos bem sucedidos costumam ser aqueles que atendem este quesito – a ultrapassagem das fronteiras partidárias como uma exigência para uma candidatura competitiva na escala territorial de uma federação como a brasileira.

A distribuição dos votos para a Câmara dos Deputados em 2002 reafirmou um padrão nacional de elevada fragmentação, que pode ser verificada no número de partidos efetivos.

Nesse caso, parece evidente a sinergia provocada pela simultaneidade com a eleição presidencial, beneficiando legendas dotadas de candidatura presidencial.

Deputados. Supõe-se, aqui, que o tempo de filiação possa indicar evidências sobre a natureza e consistência das relações firmadas dentro de cada legenda.

Valores elevados identificam a existência de um intervalo temporal significativo, espécie de estágio probatório, como a condição para que o aspirante a um posto parlamentar possa resgatar o investimento realizado previamente sob a forma de dedicação e lealdade às tarefas partidárias, deferências às suas lideranças, progressão na hierarquia interna relações firmadas e convertidas em arregimentação de suporte eleitoral. Por outro lado valores revelam a existência de custos relativamente reduzidos, associados à condição de noviciado no partido.

Tempos de filiação elevados indicam a presença de oportunidade para a geração de lealdades mais seguras. A suposição que guia esta análise é a de que quando partidos controlam o ingresso e mobilidade na carreira política, o custo de transgressões eventuais à fidelidade partidária será elevado, o que incentiva a permanência na mesma organização e, produz como resultado a sedimentação de estruturas partidárias estáveis.

Oportunidades para o recrutamento de candidatos a carreiras políticas com precários vínculos partidários prévios e ausência de mecanismos institucionais capazes de inibir a troca de legendas durante o exercício de mandatos públicos são convencionalmente indicados como pistas para explicar a magnitude do fenômeno.

Duas ressalvas podem ser feitas à hipótese de Shugart: em primeiro lugar, como Limongi (1999), não é possível fazer inferências automaticamente ao grau de disciplina legislativa a partir da leitura dos procedimentos do recrutamento eleitoral. Por outro lado, a associação entre engenharia eleitoral e as estratégias de carreira dos membros partidários deve ser mais matizada.

Essa informação deve sugerir uma dose de moderação na repercussão ao do fenômeno da migração partidária. Embora possa ser relevante, não corresponde a um fenômeno uniforme, apresentando variações significativas quando se considera cada legenda.

Marcos Katsumi Kay – N1