quinta-feira, 30 de outubro de 2008

KINZO, Maria D´Alva Gil. Burke: A Continuidade Contra a Ruptura.

KINZO, Maria D´Alva Gil. Burke: A Continuidade Contra a Ruptura. In: WEFFORT, Francisco C. (org.) Os Clássicos da Política. São Paulo, Editora Ática, 2004, vol. 2.
Estrutura: Burke: a continuidade contra a ruptura. Estado e sociedade. Constituição. Partidos.
Resumo:

Pensador e político inglês século XVIII, Edmund Burke é considerado o fundador do conservadorismo moderno. Tal atributo lhe foi imputado menos em função de sua brilhante carreira como parlamentar Whig (grupo partidário liberal), defensor das liberdades e do constitucionalismo dos ingleses, do que em virtude de suas formulações teóricas nascidas de seu ataque ferrenho aos revolucionários franceses e seus defensores na Inglaterra. Burke foi um pensador e político que nunca chegou a expor de modo sistemático suas idéias fundamentais. Estas emergem em meio a críticas e argumentos construídos na discussão acerca de questões concretas. Sua despreocupação com a sistematização de seu pensamento muito se deve ao fato de esposar uma visão hostil às abstrações.

Estado e Sociedade. Apesar de suas constantes referências pouco elogiosas ao pensamento abstrato, sua concepção sobre o Estado e a sociedade baseia-se em determinadas suposições sobre a natureza do Universo. Estado e sociedade fazem parte da ordem natural do Universo, que é uma criação divina. Segundo Burke, Deus criou um Universo ordenado, governado por leis eternas. Os homens são parte da natureza e estão sujeitos às suas leis. Estas leis eternas criam suas convenções e o imperativo de respeitá-las; regulam a dominação do homem pelo homem e controlam os direitos e obrigações dos governantes e governados. Os homens, por sua vez, dependem uns dos outros, e sua ação criativa e produtiva se desenvolve através da cooperação. Esta requer a definição de regras e a confiança mútua, o que é desenvolvido pelos homens, com o passar do tempo, através da interação, da acomodação mútua e da adaptação ao meio em que vivem. É desse modo que eles criam os princípios comuns que formam a base de uma sociedade estável.

Alguns pontos podem assim ser assinalados quanto à concepção de Burke acerca da natureza da sociedade e do Estado. (1) Em primeiro lugar, a sociedade tem uma essência moral, um sistema de mútuas expectativas, deveres e direitos sociais (e não naturais). (2) Em segundo lugar, vemos em Burke a idéia de que a sociedade é natural e de que os homens são por natureza sociais. E aqui cabe frisar que, para Burke, faz também parte da natureza das coisas a desigualdade. (A natureza é hierárquica; assim, uma sociedade ordenada é naturalmente dividida em estratos ou classes, de modo que a igualdade, tanto politíca, social como econômica, vai contra a natureza. Para Burke, a idéia de igualdade, esta "monstruosa ficção" apregoada pela Revolução Francesa, só serve para subverter a ordem e "para agravar e tornar mais amarga a desigualdade real que nunca pode ser eliminada e que a ordem da vida civil estabelece, tanto para benefício dos que têm de viver em uma condição humilde" como dos privilegiados.) (3) Em terceiro lugar, tem-se a idéia de que a sociedade não apenas tem origem divina mas também é divinamente ordenada. Segundo Burke, Deus nos legou o Estado, que é o meio necessário pelo qual nossa natureza é aperfeiçoada pela nossa virtude. Nesse sentido, a sociedade e o Estado possibilitam a realização das potencialidades humanas. (Pode-se identificar em Burke uma atitude de veneração ao Estado. Como afirma Burke, o Estado é "uma associação de toda ciência, de toda arte, de toda virtude e de toda perfeição [... ] uma associação não apenas os vivos, mas também entre os mortos e os que irão nascer". E isso nos leva a fazer alusão a um outro traço importante do pensamento de Burke: sua defesa da continuidade, sua reverência à tradição social e constitucional.)

Constituição. Uma constante no pensamento político de Burke, aparente tanto quando ele criticava o governo autocrático e a política colonial da Coroa como quando vilipendiava a Revolução Francesa, é a defesa da Constituição inglesa. Muito do seu sentido de conservação está referido ao que esta Constituição, a seu ver, representava ou personificava. (1) Em primeiro lugar, ela representava o pacto voluntário pelo qual uma sociedade é criada; e por se basear em um contrato voluntário inicial, ela é um imperativo para todos os indivíduos de uma sociedade. (2) Em segundo lugar, a Constituição inglesa personificava a tradição, e por isso deveria ser respeitada, porque esta representa a "progressiva experiência" do homem. (Afirma Burke: "Nossa Constituição é uma Constituição prescritiva; é uma Constituição cuja única autoridade consiste no fato de ter existido desde tempos imemoráveis". E as velhas instituições são as mais úteis, porque elas têm a sabedoria de Deus trabalhando através da experiência dos homens no curso de sua história.) (3) Em terceiro lugar, defender a Constituição inglesa significava defender o arranjo político instaurado a partir da Revolução de 1688, que garantia o equilíbrio entre Coroa e o Parlamento. Este arranjo político consagrava à monarquia a condição de instituição central da ordem política, ao personificar o objeto "natural" de obediência e reverência; mas atribuía ao Parlamento - corpo representativo dos diferentes interesses do reino - a condição de contrapeso da instituição monárquica, possibilitando o necessário controle sobre os abusos do poder real. (1) Assim, tem uma posição-chave nesse arranjo constitucional a Câmara dos Comuns, através da qual o povo está representado. (2) No entanto, o caráter representativo desta Câmara é para Burke muito mais virtual do que real, e tem pouco a ver com base eleitoral, mesmo porque Burke se opunha à extensão do sufrágio. (Segundo Burke, os interesses têm uma realidade objetiva e são o fruto de debate e deliberação entre homens de sabedoria e de virtude, não se confundindo com os meros desejos e opiniões do povo. É nesse sentido que Burke defendia o mandato independente na atividade de um representante. É portanto um direito e um dever dos membros do Parlamento seguir sua própria consciência e julgamento independente, ao invés de obedecer aos desejos ou instruções de sua base.)

Partidos. Finalmente cabe ressaltar a importância assinalada por Burke aos partidos políticos, peça essencial de um governo livre. Na verdade, Burke foi quem primeiro atribuiu um significado positivo ao termo partido político, dissociando-o do caráter faccioso originalmente atribuído aos agrupamentos políticos. Burke formulou a definição clássica de partido político: "Um grupo de homens unidos para a promoção, através de seu esforço conjunto, do interesse nacional, com base em algum princípio determinado com o qual todos concordam". Os partidos são instrumentos necessários para que planos comuns possam ser postos em prática "com todo o poder e autoridade do Estado".

Concebendo a sociedade como um organismo que encarnava a ordem moral de origem divina; fiel defensor da hierarquia social, das prescrições, dos direitos herdados e da continuidade histórica; crítico ferrenho das idéias e práticas da Revolução Francesa; Burke tornou-se o exponente máximo do pensamento conservador. Mas Burke foi também um vigoroso inimigo do grupo do rei Jorge III, crítico contumaz do governo autocrático e do imperialismo britânico em sua forma vigente na América, Irlanda e Índia no século XVIII; defensor de uma economia de mercado, da tolerância religiosa e dos princípios liberais da Revolução Whig de 1688. Tais atributos é que deram a Burke o título de constitucionalista liberal. Um liberal conservador, esta seria a melhor denominação para Burke; e discutir sua concepção sobre representação política, sobre partidos e governo partidário, ajuda-nos a conhecer os mecanismos de um regime parlamentar.

Marcos Katsumi Kay - N1

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

LIMONGI, Fernando Papaterra. O Federalista: remédios republicanos para males republicanos.

LIMONGI, Fernando Papaterra. O Federalista: remédios republicanos para males republicanos. In: WEFFORT, Francisco C. (org.) Os Clássicos da Política. São Paulo, Editora Ática, 2004, vol. 1.
Estrutura: O moderno federalismo. A separação dos poderes e a natureza humana. As repúblicas e as facções.
Resumo:

Obra conjunta de três autores, Alexander Hamilton, James Madison e John Jay, "O Federalista" explicita a teoria política a fundamentar o texto constitucional. O desafio teórico enfrentado por "O Federalista" era o de desmentir os dogmas arraigados de uma longa tradição. Tratava-se de demonstrar que o espírito comercial da época não impedia a constituição de governos populares e que estes dependiam exclusivamente da virtude do povo ou precisavam permanecer confinados a pequenos territórios. Um dos eixos estruturadores de "O Federalista" é o ataque à fraqueza do governo central instituído pelos Artigos da Confederação.

A experiência histórica demonstrava que as confederações " haviam sido levadas à ruína pelas razões apresentadas por Hamilton. Insistir na formação de uma Confederação seria desconhecer as lições da história e se prender às conjecturas de Montesquieu, que via nestas a possibilidade de compatibilizar as qualidades positivas dos Estados grandes - a força - com a dos pequenos - a liberdade.

Em "O Federalista" é possível notar a dificuldade em nomear a forma de governo proposta. A proposta não é estritamente nacional ou federal, mas uma composição de ambos os princípios. A distinção está no ponto assinalado por Hamilton; enquanto em uma confederação o governo central só se relaciona com Estados, cuja soberania interna permanece intacta, em uma Federação esta ação se estende aos indivíduos, fazendo com que convivam dois entes estatais de estatura diversa, com a órbita de ação dos Estados definida pela Constituição da União.

Trata-se de um recurso de argumentação utilizado para justificar a necessidade de criação do Estado - um tema ao qual "O Federalista" dedica, em verdade, pouca atenção - e do estabelecimento de controles bem definidos sobre os detentores do poder - o tema central de "O Federalista". Controlar os detentores do poder porque, como observa Madison, os homens não são governados por anjos, mas sim por outros homens, daí porque seja necessário controlá-los. "Ao constituir-se um governo - integrado por homens que terão autoridade sobre outros homens- a grande dificuldade está em que se deve primeiro habilitar o governante a controlar o governado e, depois, obrigá-lo a controlar-se a si mesmo." As estruturas internas do governo devem ser estabelecidas de tal forma que funcionem como uma defesa contra a tendência NATURAL de que o poder venha a se tornar arbitrário e tirânico.

Sendo o homem o que é, segue-se que todo aquele que detiver o poder em suas mãos tende a dele abusar. Estas reflexões, como é sabido, fundamentam a teoria da separação dos poderes, enunciada por este autor. Apesar de se apoiar expressamente em Montesquieu, a exposição de Madison da teoria da separação dos poderes contém especificidades que merecem ser notadas.

A defesa da aplicação do princípio da separação dos poderes encontra-se construída a partir de medidas constitucionais, garantias à autonomia dos diferentes ramos de poder, postos em relação um com os outros para que possam se controlar e frear mutuamente, referidas, em última análise, às características nada virtuosas dos homens, seus interesses e ambições pessoais por acumular poder. "A ambição será incentivada para enfrentar a ambição. Os interesses pessoais serão associados aos direitos constitucionais."

Caracterizadas como a principal ameaça à sorte dos governos populares, tidas corno forças negativas, no que segue os ensinamentos de uma sólida tradição, Madison inova ao defender que a sorte dos governos populares não depende de sua eliminação, mas sim de encontrar formas de neutralizar os seus efeitos. As causas das facções encontram-se semeadas na própria natureza humana, nascendo do livre desenvolvimento de suas faculdades. A diversidade de crenças, opiniões e de distribuição da propriedade decorre da liberdade dos homens de disporem de seus próprios direitos. Vale observar que entre estes direitos, Madison destaca o da propriedade, a principal fonte diferenciadora dos homens e, por isto mesmo, a fonte mais comum e duradoura das facções.

Proteger o direito de autodeterminação dos homens, isto é, proteger a sua liberdade, é o objetivo primordial dos governos, sua razão de ser. Neste ponto encontra-se explicitado o comprometimento de Madison com o credo liberal. Busca-se constituir um governo limitado e controlado para assegurar uma esfera própria para o livre desenvolvimento dos indivíduos, em especial de suas atividades econômicas.

Se as facções são inevitáveis, o problema passa a ser o de impedir que um dos diferentes interesses ou opiniões presentes na sociedade venha a controlar o poder com vistas à promoção única e exclusiva de seus objetivos. O princípio da decisão por maioria, regra fundamental dos governos populares, passa a representar uma ameaça aos direitos das facções minoritárias. À maioria aplica-se o princípio da tendência natural ao abuso do poder quando este não encontra freios diante de si. É o que naturalmente tende a acontecer nas democracias puras, onde poucas facções se defrontam e facilmente a majoritária controla todo o poder.

Madison está a advogar a causa de uma nova espécie de governo popular, uma república representativa, desconhecida na Antiguidade e por autores como Montesquieu e Rousseau que a tomam como modelo para suas reflexões. Estes autores constroem o seu modelo ideal de governo popular a partir dos exemplos de governos populares bem-sucedidos encontrados na história greco-romana. Por isto mesmo, os tempos modernos, onde a virtude havia sido substituída pelo apego ao bem-estar material, conspiravam contra a sorte desta forma de governo. Para Madison, ao contrário, esta história é uma sucessão de experiências fracassadas, dada a fraqueza congênita das democracias puras, oferecendo-lhe um modelo absolutamente negativo. Note-se, ainda, que as facções que tem em mente e que procura tornar compatíveis com o governo republicano - como pode ser observado pela leitura dos exemplos dados no correr do texto - são originárias do desenvolvimento de uma economia moderna. Madison afirma que este cenário não só é compatível com o governo popular, como também é mais apropriado para seu sucesso. A ruptura com a tradição é completa.

A distinção entre as repúblicas e as democracias puras traz vantagens à primeira em dois pontos capitais. Primeiro, fazendo com que as funções de governo sejam delegadas a um número menor de cidadãos e, segundo, aumentando a área e número de cidadãos sob a jurisdição de um único governo. À segunda característica distintiva das repúblicas deve-se a principal contribuição para evitar o mal das facções. Sob um território mais extenso e com um número maior de cidadãos cresce o número de interesses em conflito, de tal sorte que ou não existe um interesse que reuna a maioria dos cidadãos, ou, na pior das hipóteses, será difícil que se organize para agir. Ou seja, através da multiplicação das facções chega-se à sua neutralização recíproca, tornando impossível o controle exclusivo do poder por uma facção. Impede-se, assim, que qualquer interesse particular tenha condições de suprimir a liberdade.

Por outro lado, o preço desta solução pode ser a paralisia do governo, com o choque entre vários interesses a bloquear qualquer iniciativa das partes. Isto é, a solução para o mal das facções poderia acarretar um mal maior: o não-governo. Madison não chega a tocar nesta alternativa, o que poderia levar a pensar que este seria seu objetivo. Como um liberal, seria partidário de um governo mínimo, tudo mais ficando a cargo dos particulares e resolvendo-se pelas leis do mercado. Não é o caso. Madison não é um adepto de Adam Smith. À pergunta que lança no correr de sua argumentação, "Deverão as manufaturas nacionais ser incentivadas e em que grau através de restrições aos produtos estrangeiros?", não encontra resposta em um Estado mínimo. Em um não-governo, isto é, onde não fossem decididas quais as restrições aos produtos estrangeiros, uma das partes, os proprietários de terra, sairia ganhando. A solução vislumbrada por Madison não é nem o governo mínimo, nem o não-governo. Conforme afirma, a preocupação central da legislação moderna é a de fornecer os meios para a coordenação dos diferentes interesses em conflito. Levar à coordenação dos interesses é a marca distintiva das repúblicas por oposição à violência do conflito entre facções características das democracias populares. Ante o bloqueio mútuo das partes, a coordenação aparece como a única alternativa para decisão dos conflitos, o interesse geral se impondo como a única alternativa.

Marcos Katsumi Kay - N1

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

ALBUQUERQUE, José Augusto Guilhon. Montesquieu: sociedade e poder.

ALBUQUERQUE, José Augusto Guilhon. Montesquieu: sociedade e poder In: WEFFORT, Francisco C. (org.) Os Clássicos da Política. São Paulo, Editora Ática, 2004, vol. 1.
Estrutura: O conceito de lei. Os três governos. o conceito de lei. Os três governos. Os três poderes.
Resumo:

Sua preocupação central foi a de compreender as razões da decadência das monarquias, os conflitos intensos que minaram sua estabilidade, e também os mecanismos que garantiram, por tantos séculos, sua estabilidade, e que Montesquieu identifica na noção de moderação. A moderação é a pedra de toque do funcionamento estável dos governos, e é preciso encontrar os mecanismos que a produziram nos regimes do passado e do presente para propor um regime ideal para o futuro.

Até Montesquieu, a noção de Lei compreendia três dimensões essencialmente ligadas à idéia de lei de Deus. As leis exprimiam uma certa ordem natural, resultante da vontade de Deus. Elas exprimiam também um dever ser, na medida em que a ordem das coisas estava direcionada para uma finalidade divina. Finalmente, as leis tinham uma conotação de expressão da autoridade. As leis eram simultaneamente legítimas (porque expressão da autoridade), imutáveis (porque dentro da ordem das coisas) e ideais (porque visavam uma finalidade perfeita).

Montesquieu introduz o conceito de lei no início de sua obra fundamental. Definindo lei como "relações necessárias que derivam da natureza das coisas", Montesquieu estabelece uma ponte com as ciências empíricas, e particularmente com a física newtoniana. Com isso, ele rompe com a tradicional submissão da política à teologia. É possível encontrar uniformidades, constâncias na variação dos comportamentos e formas de organizar os homens, assim como é possível encontrá-las nas relações entre os corpos físicos. Tal como é possível estabelecer as leis que regem os corpos físicos a partir das relações entre massa e movimento, também as leis que regem os costumes e as instituições são relações que derivam da natureza das coisas. Com o conceito de lei, Montesquieu traz a política para fora do campo da teologia e da crônica, e a insere num campo propriamente teórico. Estabelece uma regra de imanência que incorpora a teoria política ao campo das ciências: as instituições políticas são regidas por leis que derivam das relações políticas. As leis que regem as instituições políticas, para Montesquieu, são relações entre as diversas classes em que se divide a população, as formas de organização econômica, as formas de distribuição do poder etc.

Mas o objeto de Montesquieu não são as leis que regem as relações entre os homens em geral, mas as leis positivas, isto é, as leis e instituições criadas pelos homens para reger as relações entre os homens. Montesquieu observa que, ao contrário dos outros seres, os homens têm a capacidade de se furtar às leis da razão (que deveriam reger suas relações), e além disso adotam leis escritas e costumes destinados a reger os comportamentos humanos. E têm também a capacidade de furtar-se igualmente às leis e instituições.

Os pensadores políticos que precedem Montesquieu (e Rousseau, que o sucede) são teóricos do Contrato Social (ou do Pacto), estão fundamentalmente preocupados com a natureza do poder político, e tendem a reduzir a questão da estabilidade do poder à sua natureza. Ao romper com o estado de natureza (onde a ameaça de guerra de todos contra todos põe em risco a sobrevivência da humanidade) o pacto que institui o estado de sociedade deve ser tal que garanta a estabilidade contra o risco de anarquia ou de despotismo.

Ele vai considerar duas dimensões do funcionamento político das instituições: a natureza e o princípio de governo. A natureza do governo diz respeito a quem detém o poder: na monarquia, um só governa, através de leis fixas e instituições; na república, governa o povo no todo ou em parte (repúblicas aristocráticas); no despotismo, governa a vontade de um só. As análises minuciosas de Montesquieu sobre as "leis relativas à natureza do governo" deixam claro que se trata de relações entre as instâncias de poder e a forma como o poder se distribui na sociedade, entre os diferentes grupos e classes da população.

O princípio de governo é a paixão que o move, é o modo de funcionamento dos governos, ou seja, como o poder é exercido. São três os princípios, cada um correspondendo em tese a um governo. Em tese, porque, segundo Montesquieu, ele não afirma que "toda república é virtuosa, mas sim que deveria sê-lo" para poder ser estável. Paixão que tem três modalidades: o princípio da monarquia é a honra; o da república é a virtude; e o do despotismo é o medo. A monarquia não precisa da virtude, e mesmo as paixões desonestas da nobreza a favorecem. Nessa curiosa conjunção entre o princípio e a natureza da monarquia fica claro que ela apenas repousa em instituições. É possível agora redefinir com nossas próprias palavras a natureza dos três governos: o despotismo é o governo da paixão; a república é o governo dos homens; a monarquia é o governo das instituições.

O despotismo está condenado à autofagia: ele leva necessariamente à desagregação ou às rebeliões. A república não tem princípio de moderação: ela depende de que os homens mais virtuosos contenham seus próprios apetites e contenham os demais. Na monarquia, são as instituições que contêm os impulsos da autoridade executiva e os apetites dos poderes intermediários. Na monarquia, em outras palavras, o poder está dividido e, portanto, o poder contraria o poder. Essa capacidade de conter o poder, que só outro poder possui, é a chave da moderação dos governos monárquicos.

Para Montesquieu, a república é o regime de um passado em que as cidades reuniam um pequeno grupo de homens moderados pela própria natureza das coisas: uma certa igualdade de riquezas e de costumes ditada pela escassez. Com o desenvolvimento do comércio, o crescimento das populações e o aumento e a diversificação. das riquezas ela se torna inviável: numa sociedade dividida em classes a virtude (cívica) não prospera. O despotismo seria a ameaça do futuro, na medida em que as monarquias européias aboliam os privilégios da nobreza, tornando absoluto o poder do executivo. Apenas a monarquia, isto é, o governo das instituições, seria o regime do presente. Deve ficar claro que Montesquieu não defendia a pura e simples restauração dos privilégios nobiliárquicos. Trata-se de procurar, naquilo que confere estabilidade à monarquia, algo que possa substituir o efeito moderador que resultava do papel da nobreza.

Montesquieu vai à Inglaterra, estuda in loco as bases constitucionais da liberdade. Trata-se de uma análise minuciosa da estrutura bicameral da Parlamento britânico - a Câmara Alta, constituída pela nobreza, e a Câmara dos Comuns, eleita por voto popular - e das funções dos três poderes, executivo, legislativo e judiciário. Na sua versão mais divulgada, a teoria dos poderes é conhecida como a separação dos poderes ou a eqüiputência. De acordo com essa versão, Montesquieu estabeleceria, como condição para o Estado de direito, a separação dos poderes executivo, legislativo e judiciário e a independência entre eles. A idéia de equivalência consiste em que essas três funções deveriam ser dotadas de igual poder.

Vale ressaltar, entretanto, que seria curioso buscar a separação e independência entre legislativo e executivo justamente no regime britânico. Montesquieu ressalta, aliás, a interpenetração de funções judiciárias, legislativas e executivas. Basta lembrar a prerrogativa de julgamento pelos pares nos casos de crimes políticos para perceber que a separação total não é necessária nem conveniente. A eqüipotência, ou equivalência dos poderes também é refutada implicitamente por Montesquieu, quando afirma que o judiciário é um poder nulo, "os juízes (são)... a boca que pronuncia as palavras da lei".

Montesquieu mostra claramente que há uma imbricação de funções e uma interdependência entre o executivo, o legislativo e o judiciário. A separação de poderes da teoria de Montesquieu teria, portanto, outra significação. Trata-se, dentro dessa ordem de idéias, de assegurar a existência de um poder que seja capaz de contrariar outro poder. Isto é, trata-se de encontrar uma instância independente capaz de moderar o poder do rei (do executivo). É um problema político, de correlação de forças, e não um problema jurídico-administrativo, de organização de funções,

A estabilidade do regime ideal está em que a correlação entre as forças reais da sociedade possa se expressar também nas instituições políticas. Isto é, seria necessário que o funcionamento das instituições permitisse que o poder das forças sociais contrariasse e, portanto, moderasse o poder das demais.

Lida desta forma, a teoria dos poderes de Montesquieu se torna vertiginosamente contemporânea. Ela se inscreve na linha direta das teorias democráticas que apontam a necessidade de arranjos institucionais que impeçam que alguma força política possa a priori prevalecer sobre as demais, reservando-se a capacidade de alterar as regras depois de jogado o jogo político.

Marcos Katsumi Kay - N1

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

NASCIMENTO, Milton Meira do. Rousseau: da servidão à liberdade.

NASCIMENTO, Milton Meira do. Rousseau: da servidão à liberdade. In: WEFFORT, Francisco C. (org.) Os Clássicos da Política. São Paulo, Editora Ática, 2004, vol. 1.
Estrutura: Curriculum de um cidadão de Genebra. O pacto social. A vontade e a representação.
Resumo:

Os temas mais candentes da filosofia política clássica, tais como a passagem do estado de natureza ao estado civil, o contrato social, a liberdade civil, o exercício da soberania, a distinção entre o governo e o soberano, o problema da escravidão, o surgimento da propriedade, serão tratados por Rousseau de maneira exaustiva, de um lado, retomando as reflexões dos autores da tradicional escola do direito natural, como Grotius, Pufendorf e Hobbes e, de outro, não poupando críticas pontuais a nenhum deles, o que o colocará, no século XVIII, em lugar de destaque entre os que inovaram a forma de se pensar a política, principalmente ao propor o exercício da soberania pelo povo, como condição primeira para a sua libertação. E, certamente, por isso mesmo, os protagonistas da revolução de 1789 o elegerão como patrono da Revolução ou como o primeiro revolucionário.

Textos do Contrato social e do Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, constituem uma unidade temática importante e os demais escritos, de certa maneira, aprofundam e explicitam as questões que já haviam sido abordadas naquelas duas obras. A chave para se entender a articulação entre essas duas obras está no primeiro parágrafo no capítulo I, do livro I, do Contrato: "O homem nasce livre, e por toda parte encontra-se aprisionado. O que se crê senhor dos demais, não deixa de ser mais escravo do que eles. Como se deve esta transformação? Eu o ignoro: o que poderá legitimá-la? Creio poder resolver esta questão". Ora, a trajetória do homem, da sua condição de liberdade no estado de natureza, até o surgimento da propriedade, com todos os inconvenientes que daí surgiram, foi descrita no Discurso sobre a origem da desigualdade. Nesta obra, o objetivo de Rousseau é o de construir a história hipotética da humanidade, deixando de lado os fatos, procedimento semelhante ao que outros filósofos já haviam feito no século. XVII. Espinosa e Hobbes tomaram de empréstimo, da geometria, o método para a análise dos problemas da moral e da política.

Ao declarar que ignora o processo de transformação do homem, da liberdade à servidão, nosso autor se refere aos fatos reais, que seriam bem difíceis de serem verificados, uma vez que os vestígios deixados pelos homens são insuficientes para que se tenha uma idéia precisa de toda a sua história. Esta, porém, pode ser construída hipoteticamente e demonstrada através de argumentos racionais. Qual seria pois a história hipotética da humanidade? Precisamente, a que culmina com a legitimação da desigualdade, quando o rico apresenta a proposta do pacto.

É a partir do reconhecimento dessa situação que Rousseau inicia o Contrato social, afirmando que "o homem nasce livre e em toda parte encontra-se a ferros", mas seu projeto, desta vez, muda de nível. Agora não se trata mais de reconstruir hipoteticamente a história da humanidade, mas de apresentar o dever-ser de toda ação política. Quando Rousseau se pergunta como ocorreu a mudança da liberdade para a servidão e responde imediatamente que não sabe, mas que pode resolver o problema da sua legitimidade, é preciso entender que não é o caso de legitimar a servidão, pois isto ele denunciara no Discurso, na passagem que acabamos de citar. O que pretende estabelecer no Contrato social são as condições de possibilidade de um pacto legítimo, através do qual os homens, depois de terem perdido sua liberdade natural, ganhem, em troca, a liberdade civil.

No processo de legitimação do pacto social, o fundamental é a condição de igualdade das partes contratantes.

A situação é bem diferente daquela descrita no Discurso sobre a origem da desigualdade. Agora, ninguém sai prejudicado, porque o corpo soberano que surge após o contrato é o único a determinar o modo de funcionamento da máquina política, chegando até mesmo a ponto de poder determinar a forma de distribuição da propriedade, como uma de suas atribuições possíveis, já que a alienação da propriedade de cada parte contratante foi total e sem reservas.

Desta vez, estariam dadas todas as condições para a realização da liberdade civil, pois o povo soberano, sendo ao mesmo tempo parte ativa e passiva, isto é, agente do processo de elaboração das leis e aquele que obedece a essas mesmas leis, tem todas as condições para se constituir enquanto um ser autônomo, agindo por si mesmo.

Nestas condições haveria uma conjugação perfeita entre a liberdade e a obediência. Obedecer à lei que se prescreve a si mesmo é um ato de liberdade. Fórmula que seria desenvolvida mais tarde por Kant. Um povo, portanto, só será livre quando tiver todas as condições de elaborar suas leis num clima de igualdade, de tal modo que a obediência a essas mesmas leis signifique, na verdade, uma submissão à deliberação de si mesmo e de cada cidadão, como partes do poder soberano. Isto é, uma submissão à vontade geral e não à vontade de um indivíduo em particular ou de um grupo de indivíduos.

Tal é a condição primeira de legitimidade da vida política, ou seja, aquela que marca a sua fundação através de um pacto legítimo, onde a alienação é total e onde a condição de todos é a de igualdade. Este processo de legitimaçao, da fundação do corpo político, deverá estender-se também para a máquina política em funcionamento. Não basta que tenha havido um momento inicial de legitimidade. É necessário que ela permaneça ou então que se refaça a cada instante. Para que o corpo político se desenvolva, não basta o ato de vontade fundador da associação, é preciso que essa vontade se realize: Os fins da constituição da comunidade política precisam ser realizados. Donde a necessidade de se criarem os mecanismos adequados para a realização desses fins. Essa tarefa caberá ao corpo administrativo do Estado. Para Rousseau, antes de mais nada, impõe-se definir o governo, o corpo administrativo do Estado, como funcionário do soberano, como um órgão limitado pelo poder do povo e não como um corpo autônomo ou então como o próprio poder máximo, confundindo-se neste caso com o soberano.

Se a administração é um órgão importante para o bom funcionamento da máquina política, qualquer forma de governo que se venha a adotar terá que submeter-se ao poder soberano do povo.

Neste sentido, dentro do esquema de Rousseau, as formas clássicas de governo, a monarquia, a aristocracia e a democracia, teriam um papel secundário dentro do Estado e poderiam variar ou combinar-se de acordo com as características do país, tais como a extensão do território, os costumes do povo, suas tradições etc. Mesmo sob um regime monárquico, segundo Rousseau, o povo pode manter-se como soberano, desde que o monarca se caracterize corno funcionário do povo.

Rousseau, depois de frisar o caráter do governo como um corpo submisso à autoridade soberana, depois de reconhecer a sua necessidade, passa a enumerar os riscos da sua instituição, sua tendência a degenerar. "Assim como a vontade particular age sem cessar contra a vontade geral, o governo despende um esforço contínuo contra o soberano."

O governo tende a ocupar o lugar do soberano, a constituir-se não como um corpo submisso, como um funcionário, mas como o poder máximo, invertendo portamo os papéis. Ao invés de submeter-se ao povo, o governo tende a subjugá-lo.

Uma outra instituição que merece muita atenção por parte de Rousseau é a da representação política. A força de suas expressões poderia dar a entender uma certa intransigência quanto a um mecanismo que ficaria consagrado pelas democracias modernas. No entanto, para permanecer coerente com seus princípios, sempre na exigência de legitimidade da ação política, Rousseau não admite a representação ao nível da soberania. Uma vontade não se representa. "No momento em que um povo se di representantes, não é mais livre, não mais existe." O exercício da vontade geral através de representantes significa uma sobreposição de vontades. Ninguém pode querer por um outro. Quando isto ocorre, a vontade de quem a delegou não mais existe ou não mais está sendo levada em consideração. Donde se segue que a soberania é inalienável. Mas Rousseau reconueceria a necessidade de representantes a nível de governo. E, se já era necessária uma grande vigilância em relação ao executivo, por sua tendência a agir contra a autoridade soberana, não se deve descuidar dos representantes, cuja tendência é a de agirem em nome de si mesmos e não em nome daqueles que representam. Para não se perpetuarem em suas funções, seria conveniente que fossem trocados com uma certa freqüência.

Para concluir nossa análise em relação entre o Discurso sobre a origem da desigualdade e o Contrato social, poderíamos elucidar algumas questões que muito freqüentemente têm aparecido, quando se trata do pensamento político de Rousseau. Em que medida, ao estabelecer um dever-ser de toda ação política, ou seja, as condições de possibilidade de uma ação política legítima, o autor estaria propondo um outro tipo de sociedade e dessa maneira estaria acreditando numa ação política transformadora? Da servidão, teríamos condições de desenvolvermos um projeto visando à recuperação da liberdade? A considerarmos os próprios textos de Rousseau, deparamo-nos com uma certa incredulidade quanto à recuperação da liberdade por povos que já a perderam completamente. Sua visão da história é pessimista. Quando chamado a atuar na política concreta, quando convidado a elaborar o projeto de constituição para a Córsega e a redigir a reforma das leis polonesas, Rousseau será bastante moderado e usará sempre a máxima que já havia enunciado no Contrato social: a primeira tarefa do legislador é conhecer muito bem o povo para o qual irá redigir as leis. Não existe uma ação política boa em si mesma em termos absolutos. Cada situação exige um tratamento especial. A ação política será mesmo comparada à ação do médico diante do paciente. Seu papel é prolongar a vida ao máximo, mas não poderá impedir que o corpo morra, uma vez que tiver completado o seu ciclo vital. Fazer com que um povo, da servidão recupere a liberdade, é o mesmo que recuperar a vida de um doente prestes a morrer. Tal façanha não ocorre todos os dias, mas só mesmo por um milagre. Uma reviravolta desse porte só acontece uma vez na vida de um povo.

Foi assim que os protagonistas da Revolução Francesa de 1789 compreenderam o momento extraordinário que estavam vivendo. A febre e o fervor revolucionários faziam com que cada militante se sentisse como que saindo das cinzas, da morte para a vida. E lá estavam eles a empunhar o Contrato social corno uma espécie de manual de ação política e a eleger o seu autor como o primeiro revolucionário.

Não se deve, porém, no pensamento político de Rousseau, tomar a exceção como regra de toda prática política. As revoluções são exceções na vida dos povos. O que há de fascinante na Revolução Francesa e na interpretação que uma grande parte de revolucionários fazia do pensamento político de Rousseau é que, a partir daquela data, tudo o mais se ilumina a partir da ótica dos revolucionários. A exceção virou regra. Todo o Contrato social, de uma análise cuidadosa do modo de funcionamento da engrenagem política e das condições de sua legitimidade, transformou-se num manual prático de política. Seja como for, se a leitura que os revolucionários fizeram de Rousseau é possível, é bom não nos esquecermos de que existe um outro Rousseau, que teria muito a dizer aos povos, não em épocas de grandes transtornos e convulsões sociais, como ocorre nas revoluções, mas em tempos normais, ou pelo menos no vigor das leis.

Marcos Katsumi Kay - N1

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

MELLO, Leonel Itaussu Almeida. John Locke e o individualismo liberal.

MELLO, Leonel Itaussu Almeida. John Locke e o individualismo liberal. In: WEFFORT, Francisco C.. (org.) Os Clássicos da Política. São Paulo, Editora Ática, 2004, vol. 1.
Estrutura: As revoluções inglesas. John Locke, O individualista liberal. Os dois tratados sobre o governo civil. O estado de natureza. A teoria da propriedade. o contrato social. A sociedade política ou civil. o direito de resistência. Conclusão.
Resumo:

Locke sustenta a tese de que nem a tradição nem a força, mas apenas o consentimento expresso dos governados é a única fonte do poder político legítimo. No plano teórico, constitui um importante marco da história do pensamento político, e, a nível histórico concreto, exerceu enorme influência sobre as revoluções liberais da época moderna. O modelo jusnaturalista de Locke é, em suas linhas gerais, semelhante ao de Hobbes: ambos partem do estado de natureza que, pela mediação do contrato social, realiza a passagem para o estado civil. Existe, contudo, grande diferença na forma como Locke, diversamente de Hobbes, concebe especificamente cada um dos termos do trinômio estado natural/contrato social e estado civil.

Locke afirma ser a existência do indivíduo anterior ao surgimento da sociedade e do Estado. Na sua concepção individualista, os homens viviam originalmente num estágio pré-social e pré-político, caracterizado pela mais perfeita liberdade e igualdade, denominado estado de natureza. O estado de natureza era, segundo Locke, uma situação real e historicamente determinada pela qual passara, ainda que em épocas diversas, a maior parte da humanidade. Esse estado de natureza diferia do estado de guerra hobbesiano; baseado na insegurança e na violência, por ser um estado de relativa paz, concórdia e harmonia.

Nesse estado pacífico os homens já eram dotados de razão e desfrutavam da propriedade que, numa primeira acepção genérica utilizada por Locke, designava simultaneamente a vida, a liberdade e os bens como direitos naturais do ser humano. Locke utiliza também a noção de propriedade numa segunda acepção que, em sentido estrito, significa especificamente a posse de bens móveis ou imóveis. A teoria da propriedade de Locke também difere bastante da de Hobbes. Para Locke a propriedade já existe no estado de natureza e, sendo uma instituição anterior à sociedade, é um direito natural do indivíduo que não pode ser violado pelo Estado.

O homem era naturalmente livre e proprietário de sua pessoa e de seu trabalho. Como a terra fora dada por Deus em comum a todos os homens, ao incorporar seu trabalho à matéria bruta que se encontrava em estado natural o homem tornava-a sua propriedade privada, estabelecendo sobre ela um direito próprio do qual estavam excluídos todos os outros homens. O trabalho era o fundamento originário da propriedade.

Se a propriedade era instituída pelo trabalho, este, por sua vez, impunha limitações à propriedade. Inicialmente, quando "todo o mundo era como a América", o limite da propriedade era fixado pela capacidade de trabalho do ser humano. Depois, o aparecimento do dinheiro alterou essa situação, possibilitando a troca de coisas úteis, mas perecíveis, por algo duradouro, convencionalmente aceito pelos homens. Com o dinheiro surgiu o comércio e também uma nova forma de aquisição da propriedade, poderia ser adquirida pela compra. O uso da moeda levou à concentração da riqueza e à distribuição desigual dos bens entre os homens. Esse foi, para Locke, o processo que determinou a passagem da propriedade limitada, baseada no trabalho, à propriedade ilimitada, fundada na acumulação possibilitada pelo advento do dinheiro.

O estado de natureza, relativamente pacífico, não está isento de inconvenientes, como a violação da propriedade (vida, liberdade e bens) que, na falta de lei estabelecida, de juiz imparcial e de força coercitiva para impor a execução das sentenças, coloca os indivíduos singulares em estado de guerra uns contra os outros. É a necessidade de superar esses inconvenientes que leva os homens a se unirem e estabelecerem livremente entre si o contrato social, que realiza a passagem do estado de natureza para a sociedade política ou civil. Esta é formada por um corpo político único, dotado de legislação, de judicatura e da força concentrada da comunidade: Seu objetivo precípuo é a preservação da propriedade e a proteção da comunidade dos perigos internos e externos.

O contrato social de Locke em nada se assemelha ao contrato hobbesiano. Em Hobbes, os homens firmam entre si um pacto de submissão pelo qual, visando a preservação de suas vidas, transferem a um terceiro (homem ou assembléia) a força coercitiva da comunidade, trocando voluntariamente sua liberdade pela segurança do Estado-Leviatã. Em Locke, o contrato social é um pacto de consentimento em que os homens concordam livremente em formar a sociedade civil para preservar e consolidar ainda mais os direitos que possuíam originalmente no estado de natureza. No estado civil os direitos naturais inalienáveis do ser humano à vida, à liberdade e aos bens estão melhor protegidos sob o amparo da lei, árbitro da força comum de um corpo político unitário. Assim, a passagem do estado de natureza para a sociedade política ou civil (Locke não distingue entre ambas) se opera quando, através do contrato social, os indivíduos singulares dão seu consentimento unânime para a entrada no estado civil.

Estabelecido o estado civil, o passo seguinte é a escolha pela comunidade de uma determinada forma de governo. Na escolha do governo, a unanimidade do contrato originário cede lugar ao principio da maioria, segundo o qual prevalece a decisão majoritária e, simultaneamente, são respeitados os direitos da minoria. Na concepção de Locke, porém, qualquer que seja a sua forma, "todo o governo não possui outra finalidade além da conservação da propriedade".

Definida a forma de governo, cabe igualmente à maioria escolher o poder legislativo, que Locke, conferindo-lhe uma superioridade sobre os demais poderes, denomina de poder supremo. Ao legislativo se subordinam tanto o poder executivo, confiado ao príncipe, como o poder federativo, encarregado das relações exteriores (guerra, paz, alianças e tratados). Existe uma clara separação entre o poder legislativo, de um lado, e os poderes executivo e federativo, de outro lado, os dois últimos podendo, inclusive, ser exercidos pelo mesmo magistrado.

Em suma, o livre consentimento dos indivíduos para o estabelecimento da sociedade, o livre consentimento da comunidade para a formação do governo, a proteção dos direitos de propriedade pelo governo, o controle do executivo pelo legislativo e o controle do governo pela sociedade, são, para Locke, os principais fundamentes do estado civil.

No que diz respeito às relações entre o governo e a sociedade, Locke afirma que, quando o executivo ou o legislativo violam a lei estabelecida e atentam contra a propriedade, o governo deixa de cumprir o fim a que fora destinado, tornando-se ilegal e degenerando em tirania. O que define a tirania é o exercício do poder para além do direito, visando o interesse próprio e não o bem público ou comum. Com efeito, a violação deliberada e sistemática da propriedade (vida, liberdade e bens) e o uso contínuo da força sem amparo legal colocam o governo em estado de guerra contra a sociedade e os governantes em rebelião contra os governados, conferindo ao povo o legítimo direito de resistência à opressão e à tirania. Segundo Locke, a doutrina da legitimidade da resistência ao exercício ilegal do poder reconhece ao povo, quando este não tem outro recurso ou a quem apelar para sua proteção, o direito de recorrer a força para a deposição do governo rebelde. O direito do povo à resistência é legítimo tanto para defender-se da opressão de um governo tirânico como para libertar-se do domínio de uma nação estrangeira.

Os direitos naturais inalienáveis do indivíduo à vida, à liberdade e à propriedade constituem para Locke o cerne do estado civil de é considerado por isso o pai do individualismo liberal. Através dos princípios de um direito natural preexistente ao Estado, de um Estado baseado no consenso, de subordinação do poder executivo ao poder legislativo, de um poder limitado, de direito de resistência, Locke expôs as diretrizes fundamentais do Estado liberal. Locke forneceu a posteriori a justificação moral, política e ideológica para a Revolução Gloriosa e para a monarquia parlamentar inglesa. Locke influenciou a revolução norte-americana, onde a declaração de independência foi redigida e a guerra de libertação foi travada em termos de direitos naturais e de direito de resistência para fundamentar a ruptura com o sistema colonial britânico. Locke influenciou ainda os filósofos iluministas franceses, principalmente Voltaire e Montesquieu e, através deles, a Grande Revolução de 1789 e a declaração de direitos do homem e do cidadão.

Marcos Katsumi Kay - N1