quinta-feira, 20 de novembro de 2008

BALBACHEVSKY, Elizabeth. Stuart Mill: Liberdade e Representação. In: WEFFORT, Francisco C. (org.) Os Clássicos da Política. São Paulo, Editora Ática,

BALBACHEVSKY, Elizabeth. Stuart Mill: Liberdade e Representação. In: WEFFORT, Francisco C. (org.) Os Clássicos da Política. São Paulo, Editora Ática, 2004, vol. 2.
Estrutura: Stuart Mill: Liberdade e Representação. Um novo liberalismo. Indivíduo e Liberdade.
Resumo:

John Stuart Mill é filho de James Mill, considerado um dos fundadores do utilitarismo inglês. Desde a sua mais tenra infância, Mill se viu às voltas com os projetos educacionais de seu pai, determinado a fazer do jovem Mill o porta-voz da escola utilitarista para as novas gerações. Ao longo dos 67 anos de sua vida, Stuart Mill foi testemunha de mudanças fantásticas tanto na sociedade como na política e na economia de seu país, a Inglaterra. Tão importantes quanto estas transformações na economia e na sociedade inglesa daquela época foram as mudanças que se verificaram na política daquele país. Nesta dimensão, os resultados podem ser agrupados em dois grandes blocos. (1) Em primeiro lugar temos a constituição de um conjunto de instituições capazes de canalizar e dar voz à oposição, criando um sistema legítimo de contestação pública. (2) Em segundo lugar, temos o alargamento das bases sociais do sistema político, com a incorporação de setores cada vez mais amplos da sociedade.

Na época em que Stuart Mill viveu, boa parte dos esforços necessários para tornar efetivos os canais de competição política já havia produzido os seus frutos. A questão candente que desafiava a imaginação das elites políticas inglesas era a incorporação "pacífica" da massa de trabalhadores depauperados pela industrialização, que batiam às portas do sistema político.

Um novo liberalismo. A concepção individualista, num certo sentido, coloca o homem antes da sociedade e vê nesta última, principalmente na sua instância política, um elemento de artificialidade que não aparece na concepção organicista. Para esta perspectiva de análise, as ações humanas são auto-referenciadas e importam em si mesmas. Por isso, podemos dizer que esta concepção inverte a relação indivíduo-grupo, fazendo do último um reflexo do primeiro. O agregado social é, assim, o produto de uma espécie de soma vetorial das atividades, interesses e impulsos dos indivíduos que o compõem.

A obra de Mill conduz a teoria liberal da perspectiva descendente para a ascendente. Por este motivo Stuart Mill é por muitos considerado o grande representante do pensamento liberal democrático do século passado. Com Mill, o liberalismo despe-se de seu ranço conservador, defensor do voto censitário e da cidadania restrita, para incorporar em sua agenda todo um elenco de reformas que vão desde o voto universal até a emancipação da mulher . Na obra de Mill podemos acompanhar um esforço articulado e coerente para enquadrar e responder as demandas do movimento operário inglês.

De certa forma, a obra de Mill pode ser tomada como um compromisso entre o pensamento liberal e os ideais democráticos do século XIX. O fundamento deste compromisso está no reconhecimento de que a participação política não é e não pode ser encarada como um privilégio de poucos. E está também na aceitação de que nas condições modernas, o trato da coisa pública diz respeito a todos. Daí a preocupação de Mill em dotar o estado liberal de mecanismos capazes de institucionalizar esta participação ampliada.

Em Mill, não se trata apenas de acomodar-se ao inevitável. A incorporação dos segmentos populares é para ele a única via possível para salvar a liberdade inglesa de ser presa dos interesses egoístas da próspera classe média. O voto para Mill não é um direito natural. Antes, o voto é uma forma de poder, que deve ser estendido aos trabalhadores para que estes possam defender seus direitos e interesses no mais puro sentido que o liberalismo atribui a esta expressão. Entretanto precisamos nos acautelar não vermos em Stuart Mill um pensador democrata radical. Para ele, a tirania da maioria é tão odiosa quanto a da minoria. Isto porque ambas levariam à elaboração de leis baseadas em interesses classistas. Um bom sistema representativo é aquele que não permite "que qualquer interesse seccional se torne forte o suficiente para prevalecer contra a verdade, a justiça e todos os outros interesses seccionais juntos".

Tendo em vista alcançar estes resultados, Mill propõe duas medidas. (1) Em primeiro lugar, a adoção do sistema eleitoral proporcional, que garantiria a representação das minorias, mesmo quando estas se encontrassem dispersas em vários distritos, não representando a maioria em nenhum deles. (2) Em segundo lugar, a adoção do voto plural (a ainda que contados com pesos diferentes, dando às elites culturais o papel de fiel da balança entre os interesses das classes proprietárias e o dos trabalhadores assalariados).

Indivíduo e liberdade. Para compreendermos o valor que Mill atribui à democracia, é necessário observar com mais atenção a sua concepção de sociedade e indivíduo. A posição de Stuart Mill sobre estas questões tem raízes na concepção utilitarista defendida por Bentham e James Mill. Para estes dois autores, a realidade da economia de mercado constitui-se num paradigma teórico para a construção de seus modelos de sociedade e de indivíduo. Desta forma, a natureza humana parece-lhes essencialmente pragmática. O homem é um maximizador do prazer e um minimizador do sofrimento. A sociedade é o agregado de consciências autocentradas e independentes, cada qual buscando realizar seus desejos e impulsos. O bem-estar pode ser calculado para qualquer homem subtraindo-se o montante de seu sofrimento do valor bruto de seu prazer. Prazer, dor, felicidade e ventura são aqui tomados em um sentido quantitativo radical. E possível assim se chegar a um cálculo da felicidade da sociedade, obtido através do somatório dos resultados destas operações para cada indivíduo. O bom governo será aquele capaz de garantir o maior volume de felicidade líquida para o maior número de cidadãos . Para cada ação ou questão política, é sempre possível aplicar este raciocínio para avaliar a "utilidade" de seus resultados.

Stuart Mill retém em sua obra o princípio básico do utilitarismo, que vê no bem-estar assegurado o critério último para a avaliação de qualquer governo ou sociedade. Entretanto, estabelece distinção fundamental que o levará a trilhar caminhos opostos daqueles advogados por seus mestres. Para Stuart Mill, a primeira dificuldade está em se tomar a felicidade como algo passível de mensuração puramente quantitativa. Na avaliação desta dimensão da natureza humana intervém um elemento qualitativo que lhe é intrínseco. É justamente esta a porta por onde Mill introduz uma alteração radical na concepção sobre a natureza do homem. O Homem é um ser capaz de desenvolver suas capacidades. E, ademais, faz parte de sua essência a necessidade deste desenvolvimento.

Temos assim um modelo progressivo da natureza humana e um critério novo para a aferição de um bom governo: "O grau em que ele tende a aumentar a soma das boas qualidades dos governados, coletiva e individualmente". E aqui funda-se a utilidade da democracia e da liberdade. O governo democrático é melhor porque nele encontramos as condições que favorecem o desenvolvimento das capacidades de cada cidadão. "O efeito revigorante da liberdade só atinge seu ponto máximo quando o indivíduo está, ou se encontra em vias de estar, de posse dos plenos privilégios de cidadão."

Foi na defesa desta liberdade que Mill escreveu On liberty. O argumento central desta obra assenta-se numa proposição bastante simples: O elogio da diversidade e do conflito como forças matrizes por excelência da reforma e do desenvolvimento social. Com a perspicácia que lhe é característica, Mill aponta para o fato de que uma sociedade livre, na medida mesmo em que propicia o choque das opiniões e o confronto das idéias e propostas, cria condições ímpares para que "a justiça e a verdade" subsistam. Desta forma, garante-se, através do conflito, O progresso e a auto-reforma da sociedade. Em sociedades não livres, a reforma e o desenvolvimento social só podem aparecer como fruto do acaso ou de esforços intermitentes levados a cabo por déspotas mais ou menos esclarecidos. Para Mill, a liberdade não é um direito natural. É antes de mais nada o substrato necessário para o desenvolvimento de toda a humanidade. E o é principalmente porque ela torna possível a manifestação da diversidade, a qual, por sua vez, é o ingrediente necessário para se alcançar a verdade.

Na obra de Mill encontramos a pré-história de duas noções muito caras à ciência política contemporânea: (1) a defesa do pluralismo e da diversidade societal contra as interferências do Estado e da opinião pública (esta última, a tirania da "opinião prevalecente", a pior, porque mais sistemática e cotidiana); (2) e a perspectiva de sistemas abertos, multipolares, onde a administração do dissenso predomine sobre a imposição de consensos amplos.

Marcos Katsumi Kay - N1

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

BRANDÃO, Gildo Marçal. Hegel: O Estado como Realização Histórica da Liberdade. In: WEFFORT, Francisco C. (org.) Os Clássicos da Política.

BRANDÃO, Gildo Marçal. Hegel: O Estado como Realização Histórica da Liberdade. In: WEFFORT, Francisco C. (org.) Os Clássicos da Política. São Paulo, Editora Ática, 2004, vol. 2.
Estrutura: Hegel: o Estado como realização histórica da liberdade. Hegel e os Contratualistas. A questão da história. Particularidade: propriedade e liberdade. A liberdade concreta. De Maquiavel a Hegel. A reação a Hegel.
Resumo:

Do ponto de vista teórico, o Hegel da Filosofia do direito é o primeiro a fixar o conceito de sociedade civil como algo distinto e separado do Estado político, distinção que substitui, deslocando e subvertendo os seus conteúdos, tudo o que estes filósofos elaboraram através dos conceitos de estado de natureza e estado civil. A sociedade civil é definida como um sistema de carecimentos, estrutura de dependências recíprocas onde os indivíduos satisfazem as suas necessidades através do trabalho, da divisão do trabalho e da troca; e asseguram a defesa de suas liberdades, propriedades e interesses através da administração da justiça e das corporações. Trata-se da esfera dos interesses privados, econômico-corporativos e antagônicos entre si. A ela se contrapõe o Estado político, isto é, a esfera dos interesses públicos e universais, na qual aquelas contradições estão mediatizadas e superadas. O Estado não é, assim, expressão ou reflexo do antagonismo social, a própria demonstração prática de que a contradição é irreconciliável, mas é esta divisão superada, a unidade recomposta e reconciliada consigo mesma. A marca distintiva do Estado é esta unidade, que não é uma unidade qualquer, mas a unidade substancial que traz o indivíduo à sua realidade efetiva e corporifica a mais alta expressão da liberdade.

Deve-se chamar a atenção para o fato de que a sociedade civil hegeliana não engloba apenas a esfera das relações econômicas e a formação das classes, mas também a administração da justiça e o ordenamento administrativo e corporativo. Por outro lado, também a esfera pré-estatal é historicamente produzida, não um estado de natureza. Família e sociedade civil - as esferas que aparentemente estão fora e são anteriores ao Estado - na verdade só existem e se desenvolvem no Estado. Não há história fora do Estado. Não há nada fora da história.

Hegel e os Contratualistas. A elaboração hegeliana deve ser entendida tendo como pano de fundo o que vem antes dela, o que prossegue e contra o que se insurge. Sua teoria política é, de certo ponto de vista, o momento mais alto a que chegou o jusnaturalismo - o movimento teórico-político que engloba Hobbes e Locke, Spinoza e Rousseau, mas também Kant e Fichte -, tradição que modifica radicalmente, subvertendo os seus conceitos, criando novos, construindo um método e uma teoria global sem precedentes.

A teoria contratualista faz do indivíduo o alfa e o ômega da vida social. Toma o Estado como algo derivado, uma criação artificial, produto de um pacto, ação voluntária pela qual os indivíduos abdicam de sua liberdade originária em benefício de um terceiro, dando vida a um corpo político soberano que lhes garanta vida, liberdade e bens. Tarefa precípua do Estado é, então, garantir a liberdade individual e a propriedade privada. Por essa via, entretanto, a teoria contratualista é incapaz de explicar por que o Estado pode exigir do indivíduo o sacrifício da própria vida em benefício da preservação e do desenvolvimento do todo. Ao fazer do interesse particular do indivíduo o conteúdo do Estado, ela está, segundo Hegel, confundindo Estado e sociedade civil. Na verdade, o indivíduo sequer escolhe se participa ou não do Estado - é constituído como tal por ele. A relação entre os dois é, portanto, de outra natureza: substantiva e não formal, efetiva e não optativa. Somente como membro do Estado é que o indivíduo ascende à sua "objetividade, verdade e moralidade".

A inversão hegeliana é completa. "A associação como tal é o verdadeiro conteúdo e o verdadeiro fim, o destino dos indivíduos é viver uma vida universal". O Estado é a totalidade orgânica de um povo, não um agregado, um mecanismo, um somatório de vontades arbitrárias e inessenciais. A força associativa do conjunto, da relação do todo com as partes, se revela precisamente na guerra.

A questão da história. Característico dos jusnaturalistas é a contraposição da história entre princípios supra-históricos e a própria história. É por isso, diz Hegel, que eles procuram estabelecer como o Estado deveria ser, em vez de tentar compreendê-lo como ele é. As conseqüências são dramáticas. Ao construírem a teoria do contrato, eles pressupõem a existência - lógica ou histórica - de indivíduos livres e vivendo isolados e separados uns dos outros, fora e antes da sociedade e da história. Criam uma ficção. Esta metodologia, que procura apreender formas objetivas da existência histórica por uma via apriorística e abstrata, apenas cristaliza antíteses históricas em antíteses teóricas, sem resolvê-las. Ao tomarem a natureza humana fora de seu desenvolvimento histórico, acabam por opor às manifestações concretas da história dos homens um conjunto de faculdades, uma possibilidade abstrata, um mero dever ser a partir do qual pretendem refazer o estado de coisas existente. Nada mais distante de Hegel, cuja ambição era não elaborar uma filosofia da história, se por esta se entende uma filosofia sobre a história, mas a de construir a filosofia enquanto expressão especulativa da própria história. Tendo, neste sentido, verdadeiro horror a qualquer tentativa de teorizar um ideal de Estado ou um Estado ideal, a partir do qual a realidade pudesse ser medida e "criticada".

Particularidade: propriedade e liberdade. Influenciado pela Revolução Francesa, o jovem Hegel um dia acreditou na possibilidade de restauração da polis grega. Esta ilusão foi abandonada por volta dos trinta anos, a partir da qual Hegel descobre o que considera a marca distintiva da modernidade. Numa interpretação da República platônica, ele recusa-se a analisá-la como uma utopia, um modelo normativo ou um ideal que nada tem a ver com a realidade concreta. Considera A República como a verdade do mundo grego, o sentido para o qual este tendia e teria alcançado, não tivesse sido bloqueado pelo aparecimento da particularidade. A Cidade-Estado não pode suportar o surgimento da propriedade privada e da individualidade.

É este mal que é portador de futuro. A liberdade subjetiva, a autonomia da pessoa privada só aparecem interiormente com o cristianismo e exteriormente com o mundo romano. Este, no entanto, só foi capaz de pôr uma universalidade abstrata diante de uma pessoa também abstrata. Apenas na modernidade é que a particularidade se emancipa, toma consciência de si e se universaliza. Característico do Estado moderno é ser justamente um todo que subsiste na e através da mais extrema autonomização das partes.

Deve-se chamar a atenção para o fato de que esta concepção não escapou de ser chamada de totalitária, porque organicista. O pressuposto do argumento é que o fundamento epistemológico e ontológico da democracia não pode não ser o individualismo e a visão hegeliana, ao contrário, compartilha com qualquer organicismo o princípio aristotélico do todo que é maior do que a soma das partes. O problema desta interpretação é que pouco há de comum entre uma totalidade que existe quando e porque desenvolve todas as determinações que é capaz de conter, que procede não por aniquilação e eliminação das partes mas por sua diversificação e autonomização, e uma totalidade na qual as determinações e todas as diferenciações desaparecem.

Liberdade concreta. Aristotelicamente, é livre quem é por si mesmo e não por outro. Quem é dependente não é livre. Em suas Lições sobre a filosofia da universal, Hegel diz que "o Oriente sabia e sabe que somente um é livre, o mundo grego e romano, que alguns são livres, o mundo germânico sabe que todos são livres". Esta teoria da liberdade que se realiza historicamente está na base de sua teoria das formas de governo, que retoma a classificação de Montesquieu: "Em conseqüência, diz, a primeira forma que temos na história universal é o despotismo, a segunda, a democracia e aristocracia, a terceira, a monarquia". Para chegar a tais resultados, foi preciso elaborar um novo conceito de liberdade.

Como tudo em Hegel, não existe liberdade em geral. O conceito desta supõe sempre o seu contrário, no caso concreto, a existência de determinada coerção, variável historicamente. No sentido de Locke, ela se define pela ausência de qualquer constrição e, em seguida, pelo limite que outra liberdade me opõe. Rousseau avança para além dessa liberdade meramente negativa, em direção à liberdade positiva. Ambas, especialmente a primeira, se traduzem num sistema de direitos (civis, mas, em seguida, também políticos e sociais), garantidos por lei e pelo ordenamento estatal, direitos estes que estão historicamente, em maior ou menor grau, à disposição dos cidadãos. A segunda configura especificamente essa participação política nos negócios do Estado por parte dos indivíduos que têm por meta fins particulares e os negócios da sociedade civil.

Denunciando suas limitações, a concepção hegeliana de liberdade não elimina mas incorpora tais determinações. Ela considera que a Revolução Francesa colocou mas não resolveu o problema da realização política da liberdade. Considerando-a como um estado em que o homem pode se realizar como homem e construir um mundo adequado ao seu conceito, a concepção hegeliana de liberdade concreta exige que a liberdade se eleve à consciência da necessidade - vale dizer, dos nexos objetivos e da legalidade própria da natureza e da história, das leis de seu desenvolvimento objetivo -, à compreensão do que a realidade é, porque o que é, é a Razão.

De Maquiavel a Hegel. Com Hegel, portanto, completa-se o movimento iniciado por Maquiavel, voltado para apreender o Estado tal como ele é, uma realidade histórica, inteiramente mundana, produzida pela ação dos homens. Nesse foram definitivamente arquivadas as teorias da origem natural ou divina do poder político; afirmada a absoluta soberania e excelência do Estado; a especificidade da política diante da religião, da moral e de qualquer outra ideologia; reconhecida a modernidade e centralidade da questão da liberdade e, sobretudo - pois é esta a principal contribuição de Hegel -, resolvido o Estado num processo histórico, inteiramente imanente.

A reação a Hegel. A preocupação de Hegel não é, como vimos, apenas construir uma teoria do Estado legítimo, uma nova justificação racional do Estado. Ele avança, além disso, para atribuir ao Estado as características da própria razão. Ora, ao considerá-lo "a realidade em ato da idéia ética", o "racional em si e para si", o absoluto no qual a liberdade encontra sua supre ma significação - ele despertou a suspeita generalizada de que estaria muito prosaicamente justificando o Estado existente.

Tentativa mais ousada e polêmica foi aquela realizada por Georg Lukács, num livro escrito na década de 30 sobre O jovem Hegel e os problemas da sociedade capitalista. Lukács não nega a progressiva conservadorização da teoria hegeliana, inegável à simples comparação entre o lugar e a função que a Revolução Francesa ocupa na Fenomenologia do espírito e na seca arquitetura da Filosofia do direito, que é a culminação do sistema hegeliano. No primeiro, a Revolução Francesa está no início do processo de instauração da modernidade; no segundo, no seu fim. Nem reduz esta mudança a uma mera inflexão tática, conjuntural. Ao contrário, tal deslocamento repercute na própria estrutura da teoria: na Fenomenologia, a coruja de Minerva não alça vôo apenas ao cair da noite, ela também anunciava o amanhecer.

A novidade da análise, entretanto, é que é precisamente este retrocesso, esta reconciliação com a realidade, que permite a Hegel perceber e formular com clareza, acuidade e amplitude até então inigualáveis os problemas da sociedade européia de seu tempo. Em outros termos, tal reconciliação é a condição de possibilidade sem a qual Hegel não teria sido o primeiro filósofo a se colocar "do ponto de vista da economia política moderna", conforme o Marx dos Manuscritos de 1844, que Lukács desenvolve. Assim, Hegel é não só o filósofo que mais profunda e adequada cornpreensão tem na Alemanha da essência da Revolução Francesa e do período napoleônico, mas, além disso, o único pensador alemão do período que se ocupou seriamente dos problemas da Revolução Industrial ocorrida na Inglaterra, e o único que então pôs os problemas da economia clássica inglesa em relação com os problemas da filosofia da dialética.

Marcos Katsumi Kay - N1

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

ANDRADE, Regis de Castro. Kant: A Liberdade, O Indivíduo e a República.

ANDRADE, Regis de Castro. Kant: A Liberdade, O Indivíduo e a República. In: WEFFORT, Francisco C. (org.) Os Clássicos da Política. São Paulo, Editora Ática, 2004, vol. 2.
Estrutura: A filosofia da moral e a dignidade do indivíduo. O imperativo categórico. A liberdade externa e a autonomia. A doutrina do direito. Direito privado e direito público. O direito privado: a fundamentação jurídica do meu e do teu. A constituição da sociedade civil e o direito público. A negação do direito de resistência ou de revolução. o Estado liberal. A cidadania. A república. A filosofia da história como progresso da humanidade. A dialética kantiana da história. A confederação dos Estados livres e a paz.
Resumo:

A filosofia da moral e a dignidade do indivíduo. O conhecimento racional, diz Kant, versa sobre objetos ou sobre suas próprias leis. Há dois gêneros de objetos: a natureza, que é o objeto da física, e a liberdade, que é o objeto da filosofia moral ou ética. O conhecimento das leis da própria razão, por sua vez, constitui a lógica; esse conhecimento é puramente formal, isto é, independente da experiência. Toda a filosofia kantiana do direito, da política e da história repousa sobre a concepção dos homens como seres morais: eles devem organizar-se segundo o direito, adotar a forma republicana de governo e estabelecer a paz internacional, porque tais são comandos a priori da razão, e não porque sejam úteis.

O imperativo categórico. A norma moral tem a forma de um imperativo categórico. O comando nela contido assinala a relação entre um dever ser que a razão define objetivamente e os móveis humanos, os quais, por sua constituição subjetiva, não conduzem necessariamente à realização daquela finalidade moral. O comando moral é categórico porque as ações a ele conformes são objetivamente necessárias, independentemente da sua finalidade material ou substantiva particular. Modelos de democracia. Desempenho e padrões de governo em 36 países Assim se compreende a fórmula kantiana da Lei Universal, ou imperativo categórico: "Aja sempre em conformidade com o princípio subjetivo, tal que, para você, ele deva ao mesmo tempo transformar-se em lei universal". Sendo universais, as normas morais que nos conduzem são elaboradas por nós mesmos enquanto seres racionais. Ou seja: a humanidade, e cada um de nós, é um fim em si mesmo. Se o agente racional é verdadeiramente um fim em si mesmo, ele deve ser o autor das leis que observa, e é isso que constitui seu supremo valor. Ora, obedecer às suas próprias leis é ser livre.

A liberdade externa e a autonomia. A liberdade, em Kant, é a liberdade de agir segundo leis. As leis descrevem relações de causa e efeito. Portanto os homens são livres quando causados a agir. Nos seres racionais a causa das ações é o seu próprio arbítrio. Num primeiro sentido, portanto, a liberdade é a ausência de determinações externas do comportamento. Esse é o conceito negativo de liberdade. A liberdade tem leis; e se essas leis não são externamente impostas, só podem ser auto-impostas. Esse é o conceito positivo de liberdade; ele designa a liberdade como autonomia, ou a propriedade dos seres racionais de legislarem para si próprios.

A doutrina do direito. Normalmente, o direito é "o corpo daquelas leis susceptíveis de tornar-se externas, isto é, externamente promulgadas". Toda e qualquer lei impõe deveres; mas o cumprimento desses deveres pode ou não ser coativamente exigido. No primeiro caso, trata-se de leis morais; no segundo, de normas jurídicas. Nesse argumento, a moral abrange o direito. O fundamento de ambos os tipos de leis é a autonomia da vontade, e a referência a esse fundamento moral é constitutiva do direito. As normas jurídicas são universais; elas obrigam a todos, independentemente de condições de nascimento, riqueza etc. Quem viola a liberdade de outrem ofende a todos os demais, e por todos será coagido a conformar-se à lei e compensar os danos causados. A coerção é parte integrante do direito; a liberdade, paradoxalmente, requer a coerção. Duas são as condições para o uso justo da coerção. A primeira é a seguinte: "Se um certo exercício da liberdade é um obstáculo à liberdade [de outrem] segundo as leis universais [isto é, se é injusto], então o uso da coerção para opor-se a ele [...] é justo". A segunda decorre da universalidade das leis violadas: a coerção só é justa quando exercida pela vontade geral do povo unido numa sociedade civil.

Direito privado e direito público. Como jusnaturalista, Kant distingue entre a lei natural e a lei positiva (segundo a fonte) e entre direitos inatos e adquiridos (segundo sua exigibilidade dependa ou não do seu acolhimento na lei positiva). As leis naturais se deduzem de princípios a priori; elas não requerem promulgação pública e constituem o direito privado. As segundas expressam a vontade do legislador. São promulgadas e constituem o direito público. O direito público, ou positivo, não é idêntico ao direito natural; mas é necessário pressupor a existência de um nexo sistemático entre eles, através do qual o princípio comum da justiça como liberdade opera, em grau maior ou menor, na esfera do direito positivo e constitui, dessa forma, a sua juridicidade. A distinção kantiana entre direito privado e público ressalta a existência, no estado de natureza, de um certo tipo de sociabilidade natural derivada da racionalidade humana: "O estado de natureza não é oposto e contrastado ao estado de sociedade, mas à sociedade civil, porque no estado de natureza pode haver uma sociedade, mas não uma sociedade civil".

A constituicão da sociedade civil e o direito público. O direito público é o direito positivo, emanado do legislador para a regulação dos negócios privados (justiça comutativa) e das relações entre a autoridade pública e os cidadãos (justiça distributiva). Os indivíduos que se relacionam em conformidade com leis publicamente promulgadas constituem uma sociedade civil (status civilis); vista como um todo em relação aos membros individuais, a sociedade civil se denomina Estado (civitas). Os termos "sociedade civil" e "Estado", portanto, referem-se ao mesmo objeto, considerado de pontos de vista distintos. A transição à sociedade civil é um dever universal e objetivo, porque decorre de uma idéia a priori da razão. É certo que os homens no estado de natureza tendem a hostilizar-se; mas a passagem de um estado a outro não obedece a motivos de utilidade. Trata-se de um imperativo moral: o estado civil é a realização da idéia de liberdade tanto no sentido negativo como positivo. Pressupondo-se necessariamente a juridicidade provisória do estado natural, o ato pelo qual se "constitui" o Estado é o contrato originário, concebido como idéia a priori da razão: sem essa idéia, não se poderia pensar um legislador encarregado de zelar pelo bem comum, nem cidadãos que se submetem voluntariamente às leis vigentes.

A negação do direito de resistência ou de revolução. Os cidadãos não podem opor-se aos seus governantes em qualquer hipótese. A teoria kantiana da obrigação política, vinculada à sua concepção apriorística do contrato, estabelece o dever de obediência às leis vigentes, ainda que elas sejam injustas. "A mais leve tentativa [de rebelar-se contra o chefe do Estado] é alta traição, e a um traidor dessa espécie não pode ser aplicada pena menor que a morte". Ali, ele admite que o destronamento do monarca pode ser escusável, embora não permissível: "O povo poderia ter pelo menos alguma desculpa por forçar [o destronamento] invocando o direito de necessidade (casus necessitatis)" .

O Estado liberal. Kant é um teórico do liberalismo, concebe o Estado como um instrumento (necessário) da liberdade de sujeitos individuais. A autonomia deduz-se da liberdade e a preserva e garante. A liberdade como não impedimento no estado de natureza é precária, e requer o exercício da autonomia. A reconciliação dos homens consigo mesmos enquanto seres livres necessita a promulgação pública das leis universais, que manifesta a disposição de todos e de cada um de viver em liberdade. Nega-se às autoridades públicas o dever e o direito de promover a felicidade, o bem-estar ou, de modo geral, os objetivos materiais da vida individual social. A legislação deve assentar sobre princípios universais e estáveis , ao passo que as preferências subjetivas são variáveis de indivíduo a indivíduo e cambiantes no tempo. A ninguém é dado o direito de prescrever a outrem a receita da sua felicidade. Ao Estado incumbe promover o bem público; o bem público é a manutenção da juridicidade das relações interpessoais. "As leis do direito público referem-se apenas à forma jurídica da convivência entre os homens".

A cidadania. Quando unidos para legislar, os membros da sociedade civil são denominados cidadãos. São características dos cidadãos a autonomia (capacidade de conduzir-se segundo seu próprio arbítrio), a igualdade perante a lei (não se diferenciam entre si quanto ao nascimento ou fortuna) e a independência (capacidade de sustentar-se a si próprios). Essa concepção de cidadania tem por base os direitos inatos à liberdade e à igualdade. Nenhuma Constituição poderia autorizar a escravidão, por ser ela absolutamente incompatível com os princípios da justiça. Estabelecida a sociedade segundo o direito, nem todos os seus membros qualificam-se para a atuação política através do voto, ou seja, para a cidadania ativa . Não se qualificam os que vivem sob a proteção ou sob as ordens de outrem, como os empregados, os menores e as mulheres; esses são cidadãos passivos. Por igualdade deve-se entender a igualdade de oportunidades. "As leis vigentes", diz Kant, "não podem ser incompatíveis com as leis naturais da liberdade e da igualdade que corresponde a essa igualdade, segundo as quais todos podem elevar-se da situação de cidadãos passivos ao de cidadãos ativos".

A república. A melhor forma de Estado é a república. Idéia objetivamente necessária e universalmente válida; seus atributos são deduzidos de princípios a priori. A república é o "espírito do contrato originário", pelo qual os governantes se obrigam a aproximar-se, praticamente, da idéia de uma Constituição política legítima. Na Constituição legítima, ou republicana (a) a lei é autônoma, isto é, manifesta a vontade do povo, e não a vontade de indivíduos ou grupos particulares e (b) cada pessoa tem a posse do que é seu peremptoriamente, visto que pode valer-se da coação pública para garantir seus direitos. O princípio da Constituição republicana é a liberdade; nela se conjugam a soberania popular (a vontade legislativa autônoma) e a soberania do indivíduo na esfera juridicamente limitada dos seus interesses e valores particulares.

A república é a melhor Constituição do ponto de vista do modo de funcionamento da sociedade, independentemente de quem governa. O Estado pode ser monárquico, aristocrático ou democrático; o que importa é que seja republicano. A república opõe-se ao despotismo, não à monarquia. O princípio político do republicanismo é a separação entre os poderes executivo (a administração) e legislativo. No despotismo, o soberano executa as leis que ele mesmo decretou.

Essa questão requer alguma elaboração. Como se observou acima, o bem do Estado como união do povo segundo suas próprias leis (civitas) - por oposição ao bem individual - é sua autonomia com respeito a todo e qualquer interesse particular ou poder externo. Em outras palavras, para que se preserve a liberdade política, é necessário que a esfera pública mantenha-se rigorosamente imune a influências particulares ou privadas. Para que esse supremo valor político (que é ao mesmo tempo moral e jurídico) se realize, é imperativo que ele assuma a forma que a razão a priori lhe recomenda.

O legislativo (a autoridade soberana) emite puros comandos universais, ou leis. O governante (rex, princeps) , ele mesmo submetido às leis, não pode legislar; ele executa os comandos gerais em situações cambiantes, através de decretos e regulamentos. O judiciário aplica a lei a casos individuais após julgamento pelo júri. A dedução é silogística: uma premissa maior, uma menor e a conclusão. Essa arquitetura-polítíca promove a cooperação entre os poderes - pode-se supor que Kant aluda aqui a ganhos de eficiência no desempenho estatal - e impede que um poder usurpe as atribuições do outro e instaure o despotismo.

A filosofia da história como progresso da humanidade. Kant procura demonstrar que a humanidade progride e que o progresso humano só pode ser um aperfeiçoamento moral. A história universal é a história natural do progresso da razão. A primeira tese já deixa entrever o percurso e o resultado do argumento: "Todas as capacidades naturais de uma criatura são destinadas a desenvolver-se completamente até a sua finalidade natural". Trata-se de um processo inevitável. A segunda tese sustenta que o desenvolvimento das faculdades racionais se observa A terceira tese apresenta o progresso como racionalização do mundo, e em particular das relações sociais e políticas, tal como indicam as teses subseqüentes. A história humana tende para o "Estado perfeitamente constituído".

A dialética kantiana da história. A política, como atividade de elaboração e aperfeiçoamento constitucional, é um processo de racionalização das relações entre os homens e entre os Estados. Mas o progresso não é um processo rápido, nem indolor. Ele é lento, enganoso e sobretudo contraditório. A humanidade avança por efeito da contraditoriedade das opiniões, dos interesses particulares e dos interesses nacionais. As opiniões devem entrechocar-se livremente. O povo rebelado, sob a liderança de políticos ilustrados, pode derrubar um tirano, mas não altera seu nível cultural. O verdadeiro caminho é a liberdade, a liberdade de opinião e de imprensa. O soberano não é divino, e pode errar; é necessário, portanto, conceder aos cidadãos, com o beneplácito do próprio soberano, o direito de emitir publicamente suas opiniões e a liberdade de escrever. O alargamento do debate público é condição do progresso. Outra mola do progresso é o conflito de interesses individuais e de nacionais. O progresso aparece como resultante não intencional da interação humana; uma "finalidade secreta da natureza". O antagonismo kantiano não é incompatível com a sociabilidade natural nem com a sociedade civil, ele atribui ao antagonismo humano uma função positiva: a competição e a guerra não se relacionam à justiça e à paz como termos imediatamente antitéticos, mas como mediações do progresso. Não se trata de celebrar o interesse particular enquanto tal, mas de reconciliar os particularismos em choque com a idéia de uma sociedade justa.

A confederação dos Estados livres e a paz. A história se desenrola segundo a lei natural do progresso moral; mas a intervenção política deliberada segundo a razão faz-se necessária para que se evitem as guerras. Embora definindo a paz como um princípio moral a priori - "a razão moral prática dentro de nós comanda irresistivelmente: não haverá guerra" - a cessação efetiva das hostilidades requer um acordo real, e não simplesmente ideal, entre as potências. O princípio da paz deve materializar-se efetivamente numa "confederação dos Estados livres", segundo a idéia de uma "Liga das Nações para a paz". Enfim, a Liga das Nações não constitui um soberano por sobre os Estados nacionais; por isso, ele pode ser desfeito, e deve ser refeito de tempos em tempos.

A relativa materialização da idéia da paz aparece também na reflexão sobre os fatores que contribuem para o fim das guerras. por um lado, a paz depende de que em cada país os povos tenham-se organizado em sociedade jurídica. Se o pacto originário em cada país cria a república, o pacto que constitui a Liga das Nações pressupõe a república como regime político nos países contratantes. Ao povo não interessa a guerra e, quando pode manifestar-se livremente sobre a questão, declara-se contra ela. Kant associa o processo da paz ao longo e contraditório processo natural de constituição do Estado segundo a justiça. O dever moral é inescapável, não se pode ao mesmo tempo dizer que não é possível cumpri-lo: não há, portanto, conflito entre moral e política. Mas esses dois conceitos não são idênticos. A moral refere-se à doutrina teórica do direito; a política, à doutrina prática do direito. A política, orientando-se pelos mandamentos incondicionais da razão, envolve a escolha prudente dos meios adequados à consecução dos seus fins. Não é de esperar, nem é desejável, que "os reis filosofem e os filósofos reinem". Kant justifica sua posição dizendo que o poder corrompe o livre julgamento da razão. Pode-se acrescentar: os filósofos, em sua "pureza de pombas", corromperiam a necessária "astúcia das serpentes políticas". Idéia e realidade mantêm-se externas uma à outra.

Marcos Katsumi Kay - N1