quinta-feira, 25 de setembro de 2008

RIBEIRO, Renato Janine. Hobbes: o medo e a esperança.

RIBEIRO, Renato Janine. Hobbes: o medo e a esperança. In: WEFFORT, Francisco C. (org.) Os Clássicos da Política. São Paulo, Editora Ática, 2004, vol. 1.
Estrutura: Igualdade e liberdade. o Estado, o medo e a propriedade. Um pensador maldito.
Resumo:

Hobbes é um contratualista, quer dizer, um daqueles filósofos que, entre o século XVI e o XVIII (basicamente), afirmaram que a origem do Estado e/ou da sociedade está num contrato: os homens viveriam, naturalmente, sem poder e sem organização - que somente surgiriam depois de um pacto firmado por eles, estabelecendo as regras de convívio social e de subordinação política.

Ele não afirma que os homens são absolutamente iguais, mas que são iguais o bastante para que nenhum possa triunfar de maneira total sobre outro. Decorre que geralmente o mais razoável para cada um é atacar o outro, ou para vencê-lo, ou simplesmente para evitar um ataque possível: assim a guerra se generaliza entre os homens. Por isso, se não há um Estado controlando e reprimindo, fazer a guerra contra os outros é a atitude mais racional que eu posso adotar (é preciso enfatizar esse ponto, para ninguém pensar que o "homem lobo do homem", em guerra contra todos, é um anormal; suas ações e cálculos são os únicos racionais, no estado de natureza). Hobbes deduz que no estado de natureza todo homem tem direito a tudo.

Para Hobbes, o homem é o indivíduo. O indivíduo hobbesiano não almeja tanto os bens, mas a honra. Entre as causas da violência uma das principais reside na busca da glória, quando os homens se batem "por ninharias, como uma palavra, um sorriso, uma diferença de opinião, e qualquer outro sinal de desprezo, quer seja diretamente dirigido a suas pessoas, quer indiretamente a seus parentes, seus amigos, sua nação, sua profissão ou seu nome".

É preciso que exista um Estado dotado da espada, armado, para forçar os homens ao respeito. O poder de Estado tem que ser pleno. O Estado medieval não conhecia poder absoluto, nem soberania - os poderes do rei eram contrabalançados pelos da nobreza, das cidades, dos Parlamentos. No Estado deve haver um poder soberano, isto é, um foco de autoridade que possa resolver todas as pendências e arbitrar qualquer decisão. Hobbes desenvolve essa idéia, e monta um Estado que é condição para existir a própria sociedade. A sociedade nasce com o Estado.

Não existe primeiro a sociedade, depois o poder ("o Estado"). Porque, se há governo, é justamente para que os homens possam conviver em paz: sem governo, nós nos matamos uns aos outros. Por isso, o poder do governante tem que ser ilimitado. Pois, se ele sofrer alguma limitação, se o governante tiver de respeitar tal ou qual obrigação (por exemplo. tiver que ser justo) - então quem irá julgar se ele está sendo ou não justo? Quem julgar terá também o poder de julgar se o príncipe continua príncipe ou não - e portanto será, ele que julga, a autoridade suprema. Não há alternativa: ou o poder é absoluto, ou continuamos na condição de guerra, entre poderes que se enfrentam. O soberano não assina o contrato - este é firmado apenas pelos que vão se tornar súditos, não pelo beneficiário. No momento do contrato não existe ainda soberano, que só surge devido ao contrato. Ele se conserva fora dos compromissos, e isento de qualquer obrigação.

Nesse Estado, em que o poder é absoluto, que papel caberão à liberdade e à igualdade, estes grandes valores que aprendemos a respeitar? O que Hobbes faz é justamente desmontar o valor retórico que atribuímos a palavras capazes de gerar tanto entusiasmo - e, dirá ele; tanta ambição, descontentamento e guerra. A igualdade é o fator que leva à guerra de todos. Dizendo que os homens são iguais, Hobbes não faz uma proclamação revolucionária contra o Antigo Regime, simplesmente afirma que dois ou mais homens podem querer a mesma coisa, e por isso todos vivemos em tensa competição. E a liberdade? Hobbes vai defini-la de modo que também deixa de ser um valor.

Hobbes começa reduzindo a liberdade a uma determinação física, aplicável a qualquer corpo. Com isso ele praticamente elimina o valor da liberdade como um clamor popular, como um princípio pelo qual homens lutam e morrem.

Resta porém, uma liberdade ao homem: Quando o indivíduo firmou o contrato social, renunciou ao seu direito de natureza, isto é, ao fundamento jurídico da guerra de todos. É que, neste direito, o meio (fazer o que julgasse mais conveniente) contradizia o fim (preservar a própria vida). O homem percebeu que, como todos tinham esse direito tanto quanto ele, o resultado só podia ser a guerra - e a vida do homem [era] solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta. Mas, dando poderes ao soberano, a fim de instaurar a paz, o homem só abriu mão de seu direito para proteger a sua própria vida. Se esse fim não for atendido pelo soberano, o súdito não lhe deve mais obediência - não porque o soberano violou algum compromisso (isso é impossível, pois o soberano não prometeu nada), mas simplesmente porque desapareceu a razão que levava o súdito a obedecer. Esta é a verdadeira liberdade do súdito.

O soberano não perde a soberania se não atende aos caprichos de cada súdito. Mas, se deixa de proteger a vida de determinado indivíduo, este indivíduo (e só ele) não lhe deve mais sujeição. Os outros não podem aliar-se ao desprotegido, porque o governante continua a protegê-los. E pouco importa se o soberano fere o ex-súdito tendo ou não razão (afinal, ninguém pode julgar o soberano).

Mas esse Estado hobbesiano continua marcado pelo medo. O soberano governa pelo temor que inflige a seus súditos. Sem medo, ninguém abriria mão de toda a liberdade que tem naturalmente; se não temesse a morte violenta, que homem renunciaria ao direito que possui?

Devemos, porém, matizar o medo que há no Estado hobbesiano. Primeiro, o Leviatã não aterroriza. Terror existe no estado de natureza, quando vivo no pavor de que meu suposto amigo me mate. Já o poder soberano apenas mantém temerosos os súditos, que agora conhecem as linhas gerais do que devem seguir para não incorrer na ira do governante. Segundo, o indivíduo bem comportado dificilmente terá problemas com o soberano. E, terceiro, o Estado não se limita a deter a morte violenta. Não é produto apenas do medo à morte - se entramos no Estado é também com uma esperança (em filosofia, o medo e a esperança são um velho par) de ter vida melhor e mais confortável.

O conforto, em grande parte, deve-se à propriedade. A sociedade burguesa, que no tempo de Hobbes já luta para se afirmar, estabelece a autonomia do proprietário para fazer com seu bem o que bem entenda. Na Idade Média, a propriedade era um direito limitado, porque havia inúmeros costumes e obrigações que a controlavam: O senhor de terras não podia impedir o pobre de colher espigas, ou frutas, na proporção necessária para saciar a fome. Se havia um servo ligado à gleba, nem este podia deixá-la, nem o senhor podia expulsá-lo para dar outro uso à terra. Nos tempos modernos, o proprietário adquire o direito não só ao uso do bem e a seus frutos, mas também ao abuso: o direito de alienar o bem, de destruí-lo, vendê-lo ou dá-lo.

Hobbes reconhece o fim das velhas limitações feudais à propriedade - e nisso ele está de acordo com as classes burguesas, empenhadas em acabar com os direitos das classes populares à terra comunal ou privada - mas, ao mesmo tempo, estabelece um limite muito forte à pretensão burguesa de autonomia: as terras e bens estão controlados pelo soberano.

E aqui podemos entender por que Hobbes é, com Maquiavel e em certa medida Rousseau, um dos pensadores mais "malditos" da história da filosofia política - pois, no século XVII, o termo "hobbista" é quase tão ofensivo quanto "maquiavélico".

Não é só porque apresenta o Estado como monstro frio e o homem como belicoso, rompendo com a confortadora imagem aristotélica do bom governante e do indivíduo de boa natureza. Não é só porque subordina a religião ao poder político. Mas é, também, porque nega um direito natural ou sagrado do indivíduo à sua propriedade.

No seu tempo, e ainda hoje, a burguesia vai procurar fundar a propriedade privada num direito anterior e superior ao Estado: por isso ela endossará Locke, dizendo que a finalidade do poder público consiste em proteger a propriedade. Um direito aos bens que dependa do beneplácito do governante vai frontalmente contra a pretensão da burguesia a controlar, enquanto classe, o poder de Estado; e, como isso é o que vai acontecer na Inglaterra após a Revolução Gloriosa (1688), o pensamento hobbesiano não terá campo de aplicação em seu próprio país, nem em nenhum outro.

O contrato produz dois resultados importantes. Primeiro, o homem é o artífice de sua condição, de seu destino, e não Deus ou a natureza. Segundo, o homem pode conhecer tanto a sua presente condição miserável quanto os meios de alcançar a paz e a prosperidade. Esses dois efeitos, embora a via do contrato tenha sido abandonada na filosofia política posterior ao século XVIII, continuam inspirando o pensamento sobre o poder e as relações sociais.

Marcos Katsumi Kay - N1

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