quinta-feira, 23 de outubro de 2008

LIMONGI, Fernando Papaterra. O Federalista: remédios republicanos para males republicanos.

LIMONGI, Fernando Papaterra. O Federalista: remédios republicanos para males republicanos. In: WEFFORT, Francisco C. (org.) Os Clássicos da Política. São Paulo, Editora Ática, 2004, vol. 1.
Estrutura: O moderno federalismo. A separação dos poderes e a natureza humana. As repúblicas e as facções.
Resumo:

Obra conjunta de três autores, Alexander Hamilton, James Madison e John Jay, "O Federalista" explicita a teoria política a fundamentar o texto constitucional. O desafio teórico enfrentado por "O Federalista" era o de desmentir os dogmas arraigados de uma longa tradição. Tratava-se de demonstrar que o espírito comercial da época não impedia a constituição de governos populares e que estes dependiam exclusivamente da virtude do povo ou precisavam permanecer confinados a pequenos territórios. Um dos eixos estruturadores de "O Federalista" é o ataque à fraqueza do governo central instituído pelos Artigos da Confederação.

A experiência histórica demonstrava que as confederações " haviam sido levadas à ruína pelas razões apresentadas por Hamilton. Insistir na formação de uma Confederação seria desconhecer as lições da história e se prender às conjecturas de Montesquieu, que via nestas a possibilidade de compatibilizar as qualidades positivas dos Estados grandes - a força - com a dos pequenos - a liberdade.

Em "O Federalista" é possível notar a dificuldade em nomear a forma de governo proposta. A proposta não é estritamente nacional ou federal, mas uma composição de ambos os princípios. A distinção está no ponto assinalado por Hamilton; enquanto em uma confederação o governo central só se relaciona com Estados, cuja soberania interna permanece intacta, em uma Federação esta ação se estende aos indivíduos, fazendo com que convivam dois entes estatais de estatura diversa, com a órbita de ação dos Estados definida pela Constituição da União.

Trata-se de um recurso de argumentação utilizado para justificar a necessidade de criação do Estado - um tema ao qual "O Federalista" dedica, em verdade, pouca atenção - e do estabelecimento de controles bem definidos sobre os detentores do poder - o tema central de "O Federalista". Controlar os detentores do poder porque, como observa Madison, os homens não são governados por anjos, mas sim por outros homens, daí porque seja necessário controlá-los. "Ao constituir-se um governo - integrado por homens que terão autoridade sobre outros homens- a grande dificuldade está em que se deve primeiro habilitar o governante a controlar o governado e, depois, obrigá-lo a controlar-se a si mesmo." As estruturas internas do governo devem ser estabelecidas de tal forma que funcionem como uma defesa contra a tendência NATURAL de que o poder venha a se tornar arbitrário e tirânico.

Sendo o homem o que é, segue-se que todo aquele que detiver o poder em suas mãos tende a dele abusar. Estas reflexões, como é sabido, fundamentam a teoria da separação dos poderes, enunciada por este autor. Apesar de se apoiar expressamente em Montesquieu, a exposição de Madison da teoria da separação dos poderes contém especificidades que merecem ser notadas.

A defesa da aplicação do princípio da separação dos poderes encontra-se construída a partir de medidas constitucionais, garantias à autonomia dos diferentes ramos de poder, postos em relação um com os outros para que possam se controlar e frear mutuamente, referidas, em última análise, às características nada virtuosas dos homens, seus interesses e ambições pessoais por acumular poder. "A ambição será incentivada para enfrentar a ambição. Os interesses pessoais serão associados aos direitos constitucionais."

Caracterizadas como a principal ameaça à sorte dos governos populares, tidas corno forças negativas, no que segue os ensinamentos de uma sólida tradição, Madison inova ao defender que a sorte dos governos populares não depende de sua eliminação, mas sim de encontrar formas de neutralizar os seus efeitos. As causas das facções encontram-se semeadas na própria natureza humana, nascendo do livre desenvolvimento de suas faculdades. A diversidade de crenças, opiniões e de distribuição da propriedade decorre da liberdade dos homens de disporem de seus próprios direitos. Vale observar que entre estes direitos, Madison destaca o da propriedade, a principal fonte diferenciadora dos homens e, por isto mesmo, a fonte mais comum e duradoura das facções.

Proteger o direito de autodeterminação dos homens, isto é, proteger a sua liberdade, é o objetivo primordial dos governos, sua razão de ser. Neste ponto encontra-se explicitado o comprometimento de Madison com o credo liberal. Busca-se constituir um governo limitado e controlado para assegurar uma esfera própria para o livre desenvolvimento dos indivíduos, em especial de suas atividades econômicas.

Se as facções são inevitáveis, o problema passa a ser o de impedir que um dos diferentes interesses ou opiniões presentes na sociedade venha a controlar o poder com vistas à promoção única e exclusiva de seus objetivos. O princípio da decisão por maioria, regra fundamental dos governos populares, passa a representar uma ameaça aos direitos das facções minoritárias. À maioria aplica-se o princípio da tendência natural ao abuso do poder quando este não encontra freios diante de si. É o que naturalmente tende a acontecer nas democracias puras, onde poucas facções se defrontam e facilmente a majoritária controla todo o poder.

Madison está a advogar a causa de uma nova espécie de governo popular, uma república representativa, desconhecida na Antiguidade e por autores como Montesquieu e Rousseau que a tomam como modelo para suas reflexões. Estes autores constroem o seu modelo ideal de governo popular a partir dos exemplos de governos populares bem-sucedidos encontrados na história greco-romana. Por isto mesmo, os tempos modernos, onde a virtude havia sido substituída pelo apego ao bem-estar material, conspiravam contra a sorte desta forma de governo. Para Madison, ao contrário, esta história é uma sucessão de experiências fracassadas, dada a fraqueza congênita das democracias puras, oferecendo-lhe um modelo absolutamente negativo. Note-se, ainda, que as facções que tem em mente e que procura tornar compatíveis com o governo republicano - como pode ser observado pela leitura dos exemplos dados no correr do texto - são originárias do desenvolvimento de uma economia moderna. Madison afirma que este cenário não só é compatível com o governo popular, como também é mais apropriado para seu sucesso. A ruptura com a tradição é completa.

A distinção entre as repúblicas e as democracias puras traz vantagens à primeira em dois pontos capitais. Primeiro, fazendo com que as funções de governo sejam delegadas a um número menor de cidadãos e, segundo, aumentando a área e número de cidadãos sob a jurisdição de um único governo. À segunda característica distintiva das repúblicas deve-se a principal contribuição para evitar o mal das facções. Sob um território mais extenso e com um número maior de cidadãos cresce o número de interesses em conflito, de tal sorte que ou não existe um interesse que reuna a maioria dos cidadãos, ou, na pior das hipóteses, será difícil que se organize para agir. Ou seja, através da multiplicação das facções chega-se à sua neutralização recíproca, tornando impossível o controle exclusivo do poder por uma facção. Impede-se, assim, que qualquer interesse particular tenha condições de suprimir a liberdade.

Por outro lado, o preço desta solução pode ser a paralisia do governo, com o choque entre vários interesses a bloquear qualquer iniciativa das partes. Isto é, a solução para o mal das facções poderia acarretar um mal maior: o não-governo. Madison não chega a tocar nesta alternativa, o que poderia levar a pensar que este seria seu objetivo. Como um liberal, seria partidário de um governo mínimo, tudo mais ficando a cargo dos particulares e resolvendo-se pelas leis do mercado. Não é o caso. Madison não é um adepto de Adam Smith. À pergunta que lança no correr de sua argumentação, "Deverão as manufaturas nacionais ser incentivadas e em que grau através de restrições aos produtos estrangeiros?", não encontra resposta em um Estado mínimo. Em um não-governo, isto é, onde não fossem decididas quais as restrições aos produtos estrangeiros, uma das partes, os proprietários de terra, sairia ganhando. A solução vislumbrada por Madison não é nem o governo mínimo, nem o não-governo. Conforme afirma, a preocupação central da legislação moderna é a de fornecer os meios para a coordenação dos diferentes interesses em conflito. Levar à coordenação dos interesses é a marca distintiva das repúblicas por oposição à violência do conflito entre facções características das democracias populares. Ante o bloqueio mútuo das partes, a coordenação aparece como a única alternativa para decisão dos conflitos, o interesse geral se impondo como a única alternativa.

Marcos Katsumi Kay - N1

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