quinta-feira, 6 de novembro de 2008

ANDRADE, Regis de Castro. Kant: A Liberdade, O Indivíduo e a República.

ANDRADE, Regis de Castro. Kant: A Liberdade, O Indivíduo e a República. In: WEFFORT, Francisco C. (org.) Os Clássicos da Política. São Paulo, Editora Ática, 2004, vol. 2.
Estrutura: A filosofia da moral e a dignidade do indivíduo. O imperativo categórico. A liberdade externa e a autonomia. A doutrina do direito. Direito privado e direito público. O direito privado: a fundamentação jurídica do meu e do teu. A constituição da sociedade civil e o direito público. A negação do direito de resistência ou de revolução. o Estado liberal. A cidadania. A república. A filosofia da história como progresso da humanidade. A dialética kantiana da história. A confederação dos Estados livres e a paz.
Resumo:

A filosofia da moral e a dignidade do indivíduo. O conhecimento racional, diz Kant, versa sobre objetos ou sobre suas próprias leis. Há dois gêneros de objetos: a natureza, que é o objeto da física, e a liberdade, que é o objeto da filosofia moral ou ética. O conhecimento das leis da própria razão, por sua vez, constitui a lógica; esse conhecimento é puramente formal, isto é, independente da experiência. Toda a filosofia kantiana do direito, da política e da história repousa sobre a concepção dos homens como seres morais: eles devem organizar-se segundo o direito, adotar a forma republicana de governo e estabelecer a paz internacional, porque tais são comandos a priori da razão, e não porque sejam úteis.

O imperativo categórico. A norma moral tem a forma de um imperativo categórico. O comando nela contido assinala a relação entre um dever ser que a razão define objetivamente e os móveis humanos, os quais, por sua constituição subjetiva, não conduzem necessariamente à realização daquela finalidade moral. O comando moral é categórico porque as ações a ele conformes são objetivamente necessárias, independentemente da sua finalidade material ou substantiva particular. Modelos de democracia. Desempenho e padrões de governo em 36 países Assim se compreende a fórmula kantiana da Lei Universal, ou imperativo categórico: "Aja sempre em conformidade com o princípio subjetivo, tal que, para você, ele deva ao mesmo tempo transformar-se em lei universal". Sendo universais, as normas morais que nos conduzem são elaboradas por nós mesmos enquanto seres racionais. Ou seja: a humanidade, e cada um de nós, é um fim em si mesmo. Se o agente racional é verdadeiramente um fim em si mesmo, ele deve ser o autor das leis que observa, e é isso que constitui seu supremo valor. Ora, obedecer às suas próprias leis é ser livre.

A liberdade externa e a autonomia. A liberdade, em Kant, é a liberdade de agir segundo leis. As leis descrevem relações de causa e efeito. Portanto os homens são livres quando causados a agir. Nos seres racionais a causa das ações é o seu próprio arbítrio. Num primeiro sentido, portanto, a liberdade é a ausência de determinações externas do comportamento. Esse é o conceito negativo de liberdade. A liberdade tem leis; e se essas leis não são externamente impostas, só podem ser auto-impostas. Esse é o conceito positivo de liberdade; ele designa a liberdade como autonomia, ou a propriedade dos seres racionais de legislarem para si próprios.

A doutrina do direito. Normalmente, o direito é "o corpo daquelas leis susceptíveis de tornar-se externas, isto é, externamente promulgadas". Toda e qualquer lei impõe deveres; mas o cumprimento desses deveres pode ou não ser coativamente exigido. No primeiro caso, trata-se de leis morais; no segundo, de normas jurídicas. Nesse argumento, a moral abrange o direito. O fundamento de ambos os tipos de leis é a autonomia da vontade, e a referência a esse fundamento moral é constitutiva do direito. As normas jurídicas são universais; elas obrigam a todos, independentemente de condições de nascimento, riqueza etc. Quem viola a liberdade de outrem ofende a todos os demais, e por todos será coagido a conformar-se à lei e compensar os danos causados. A coerção é parte integrante do direito; a liberdade, paradoxalmente, requer a coerção. Duas são as condições para o uso justo da coerção. A primeira é a seguinte: "Se um certo exercício da liberdade é um obstáculo à liberdade [de outrem] segundo as leis universais [isto é, se é injusto], então o uso da coerção para opor-se a ele [...] é justo". A segunda decorre da universalidade das leis violadas: a coerção só é justa quando exercida pela vontade geral do povo unido numa sociedade civil.

Direito privado e direito público. Como jusnaturalista, Kant distingue entre a lei natural e a lei positiva (segundo a fonte) e entre direitos inatos e adquiridos (segundo sua exigibilidade dependa ou não do seu acolhimento na lei positiva). As leis naturais se deduzem de princípios a priori; elas não requerem promulgação pública e constituem o direito privado. As segundas expressam a vontade do legislador. São promulgadas e constituem o direito público. O direito público, ou positivo, não é idêntico ao direito natural; mas é necessário pressupor a existência de um nexo sistemático entre eles, através do qual o princípio comum da justiça como liberdade opera, em grau maior ou menor, na esfera do direito positivo e constitui, dessa forma, a sua juridicidade. A distinção kantiana entre direito privado e público ressalta a existência, no estado de natureza, de um certo tipo de sociabilidade natural derivada da racionalidade humana: "O estado de natureza não é oposto e contrastado ao estado de sociedade, mas à sociedade civil, porque no estado de natureza pode haver uma sociedade, mas não uma sociedade civil".

A constituicão da sociedade civil e o direito público. O direito público é o direito positivo, emanado do legislador para a regulação dos negócios privados (justiça comutativa) e das relações entre a autoridade pública e os cidadãos (justiça distributiva). Os indivíduos que se relacionam em conformidade com leis publicamente promulgadas constituem uma sociedade civil (status civilis); vista como um todo em relação aos membros individuais, a sociedade civil se denomina Estado (civitas). Os termos "sociedade civil" e "Estado", portanto, referem-se ao mesmo objeto, considerado de pontos de vista distintos. A transição à sociedade civil é um dever universal e objetivo, porque decorre de uma idéia a priori da razão. É certo que os homens no estado de natureza tendem a hostilizar-se; mas a passagem de um estado a outro não obedece a motivos de utilidade. Trata-se de um imperativo moral: o estado civil é a realização da idéia de liberdade tanto no sentido negativo como positivo. Pressupondo-se necessariamente a juridicidade provisória do estado natural, o ato pelo qual se "constitui" o Estado é o contrato originário, concebido como idéia a priori da razão: sem essa idéia, não se poderia pensar um legislador encarregado de zelar pelo bem comum, nem cidadãos que se submetem voluntariamente às leis vigentes.

A negação do direito de resistência ou de revolução. Os cidadãos não podem opor-se aos seus governantes em qualquer hipótese. A teoria kantiana da obrigação política, vinculada à sua concepção apriorística do contrato, estabelece o dever de obediência às leis vigentes, ainda que elas sejam injustas. "A mais leve tentativa [de rebelar-se contra o chefe do Estado] é alta traição, e a um traidor dessa espécie não pode ser aplicada pena menor que a morte". Ali, ele admite que o destronamento do monarca pode ser escusável, embora não permissível: "O povo poderia ter pelo menos alguma desculpa por forçar [o destronamento] invocando o direito de necessidade (casus necessitatis)" .

O Estado liberal. Kant é um teórico do liberalismo, concebe o Estado como um instrumento (necessário) da liberdade de sujeitos individuais. A autonomia deduz-se da liberdade e a preserva e garante. A liberdade como não impedimento no estado de natureza é precária, e requer o exercício da autonomia. A reconciliação dos homens consigo mesmos enquanto seres livres necessita a promulgação pública das leis universais, que manifesta a disposição de todos e de cada um de viver em liberdade. Nega-se às autoridades públicas o dever e o direito de promover a felicidade, o bem-estar ou, de modo geral, os objetivos materiais da vida individual social. A legislação deve assentar sobre princípios universais e estáveis , ao passo que as preferências subjetivas são variáveis de indivíduo a indivíduo e cambiantes no tempo. A ninguém é dado o direito de prescrever a outrem a receita da sua felicidade. Ao Estado incumbe promover o bem público; o bem público é a manutenção da juridicidade das relações interpessoais. "As leis do direito público referem-se apenas à forma jurídica da convivência entre os homens".

A cidadania. Quando unidos para legislar, os membros da sociedade civil são denominados cidadãos. São características dos cidadãos a autonomia (capacidade de conduzir-se segundo seu próprio arbítrio), a igualdade perante a lei (não se diferenciam entre si quanto ao nascimento ou fortuna) e a independência (capacidade de sustentar-se a si próprios). Essa concepção de cidadania tem por base os direitos inatos à liberdade e à igualdade. Nenhuma Constituição poderia autorizar a escravidão, por ser ela absolutamente incompatível com os princípios da justiça. Estabelecida a sociedade segundo o direito, nem todos os seus membros qualificam-se para a atuação política através do voto, ou seja, para a cidadania ativa . Não se qualificam os que vivem sob a proteção ou sob as ordens de outrem, como os empregados, os menores e as mulheres; esses são cidadãos passivos. Por igualdade deve-se entender a igualdade de oportunidades. "As leis vigentes", diz Kant, "não podem ser incompatíveis com as leis naturais da liberdade e da igualdade que corresponde a essa igualdade, segundo as quais todos podem elevar-se da situação de cidadãos passivos ao de cidadãos ativos".

A república. A melhor forma de Estado é a república. Idéia objetivamente necessária e universalmente válida; seus atributos são deduzidos de princípios a priori. A república é o "espírito do contrato originário", pelo qual os governantes se obrigam a aproximar-se, praticamente, da idéia de uma Constituição política legítima. Na Constituição legítima, ou republicana (a) a lei é autônoma, isto é, manifesta a vontade do povo, e não a vontade de indivíduos ou grupos particulares e (b) cada pessoa tem a posse do que é seu peremptoriamente, visto que pode valer-se da coação pública para garantir seus direitos. O princípio da Constituição republicana é a liberdade; nela se conjugam a soberania popular (a vontade legislativa autônoma) e a soberania do indivíduo na esfera juridicamente limitada dos seus interesses e valores particulares.

A república é a melhor Constituição do ponto de vista do modo de funcionamento da sociedade, independentemente de quem governa. O Estado pode ser monárquico, aristocrático ou democrático; o que importa é que seja republicano. A república opõe-se ao despotismo, não à monarquia. O princípio político do republicanismo é a separação entre os poderes executivo (a administração) e legislativo. No despotismo, o soberano executa as leis que ele mesmo decretou.

Essa questão requer alguma elaboração. Como se observou acima, o bem do Estado como união do povo segundo suas próprias leis (civitas) - por oposição ao bem individual - é sua autonomia com respeito a todo e qualquer interesse particular ou poder externo. Em outras palavras, para que se preserve a liberdade política, é necessário que a esfera pública mantenha-se rigorosamente imune a influências particulares ou privadas. Para que esse supremo valor político (que é ao mesmo tempo moral e jurídico) se realize, é imperativo que ele assuma a forma que a razão a priori lhe recomenda.

O legislativo (a autoridade soberana) emite puros comandos universais, ou leis. O governante (rex, princeps) , ele mesmo submetido às leis, não pode legislar; ele executa os comandos gerais em situações cambiantes, através de decretos e regulamentos. O judiciário aplica a lei a casos individuais após julgamento pelo júri. A dedução é silogística: uma premissa maior, uma menor e a conclusão. Essa arquitetura-polítíca promove a cooperação entre os poderes - pode-se supor que Kant aluda aqui a ganhos de eficiência no desempenho estatal - e impede que um poder usurpe as atribuições do outro e instaure o despotismo.

A filosofia da história como progresso da humanidade. Kant procura demonstrar que a humanidade progride e que o progresso humano só pode ser um aperfeiçoamento moral. A história universal é a história natural do progresso da razão. A primeira tese já deixa entrever o percurso e o resultado do argumento: "Todas as capacidades naturais de uma criatura são destinadas a desenvolver-se completamente até a sua finalidade natural". Trata-se de um processo inevitável. A segunda tese sustenta que o desenvolvimento das faculdades racionais se observa A terceira tese apresenta o progresso como racionalização do mundo, e em particular das relações sociais e políticas, tal como indicam as teses subseqüentes. A história humana tende para o "Estado perfeitamente constituído".

A dialética kantiana da história. A política, como atividade de elaboração e aperfeiçoamento constitucional, é um processo de racionalização das relações entre os homens e entre os Estados. Mas o progresso não é um processo rápido, nem indolor. Ele é lento, enganoso e sobretudo contraditório. A humanidade avança por efeito da contraditoriedade das opiniões, dos interesses particulares e dos interesses nacionais. As opiniões devem entrechocar-se livremente. O povo rebelado, sob a liderança de políticos ilustrados, pode derrubar um tirano, mas não altera seu nível cultural. O verdadeiro caminho é a liberdade, a liberdade de opinião e de imprensa. O soberano não é divino, e pode errar; é necessário, portanto, conceder aos cidadãos, com o beneplácito do próprio soberano, o direito de emitir publicamente suas opiniões e a liberdade de escrever. O alargamento do debate público é condição do progresso. Outra mola do progresso é o conflito de interesses individuais e de nacionais. O progresso aparece como resultante não intencional da interação humana; uma "finalidade secreta da natureza". O antagonismo kantiano não é incompatível com a sociabilidade natural nem com a sociedade civil, ele atribui ao antagonismo humano uma função positiva: a competição e a guerra não se relacionam à justiça e à paz como termos imediatamente antitéticos, mas como mediações do progresso. Não se trata de celebrar o interesse particular enquanto tal, mas de reconciliar os particularismos em choque com a idéia de uma sociedade justa.

A confederação dos Estados livres e a paz. A história se desenrola segundo a lei natural do progresso moral; mas a intervenção política deliberada segundo a razão faz-se necessária para que se evitem as guerras. Embora definindo a paz como um princípio moral a priori - "a razão moral prática dentro de nós comanda irresistivelmente: não haverá guerra" - a cessação efetiva das hostilidades requer um acordo real, e não simplesmente ideal, entre as potências. O princípio da paz deve materializar-se efetivamente numa "confederação dos Estados livres", segundo a idéia de uma "Liga das Nações para a paz". Enfim, a Liga das Nações não constitui um soberano por sobre os Estados nacionais; por isso, ele pode ser desfeito, e deve ser refeito de tempos em tempos.

A relativa materialização da idéia da paz aparece também na reflexão sobre os fatores que contribuem para o fim das guerras. por um lado, a paz depende de que em cada país os povos tenham-se organizado em sociedade jurídica. Se o pacto originário em cada país cria a república, o pacto que constitui a Liga das Nações pressupõe a república como regime político nos países contratantes. Ao povo não interessa a guerra e, quando pode manifestar-se livremente sobre a questão, declara-se contra ela. Kant associa o processo da paz ao longo e contraditório processo natural de constituição do Estado segundo a justiça. O dever moral é inescapável, não se pode ao mesmo tempo dizer que não é possível cumpri-lo: não há, portanto, conflito entre moral e política. Mas esses dois conceitos não são idênticos. A moral refere-se à doutrina teórica do direito; a política, à doutrina prática do direito. A política, orientando-se pelos mandamentos incondicionais da razão, envolve a escolha prudente dos meios adequados à consecução dos seus fins. Não é de esperar, nem é desejável, que "os reis filosofem e os filósofos reinem". Kant justifica sua posição dizendo que o poder corrompe o livre julgamento da razão. Pode-se acrescentar: os filósofos, em sua "pureza de pombas", corromperiam a necessária "astúcia das serpentes políticas". Idéia e realidade mantêm-se externas uma à outra.

Marcos Katsumi Kay - N1

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