quinta-feira, 13 de novembro de 2008

BRANDÃO, Gildo Marçal. Hegel: O Estado como Realização Histórica da Liberdade. In: WEFFORT, Francisco C. (org.) Os Clássicos da Política.

BRANDÃO, Gildo Marçal. Hegel: O Estado como Realização Histórica da Liberdade. In: WEFFORT, Francisco C. (org.) Os Clássicos da Política. São Paulo, Editora Ática, 2004, vol. 2.
Estrutura: Hegel: o Estado como realização histórica da liberdade. Hegel e os Contratualistas. A questão da história. Particularidade: propriedade e liberdade. A liberdade concreta. De Maquiavel a Hegel. A reação a Hegel.
Resumo:

Do ponto de vista teórico, o Hegel da Filosofia do direito é o primeiro a fixar o conceito de sociedade civil como algo distinto e separado do Estado político, distinção que substitui, deslocando e subvertendo os seus conteúdos, tudo o que estes filósofos elaboraram através dos conceitos de estado de natureza e estado civil. A sociedade civil é definida como um sistema de carecimentos, estrutura de dependências recíprocas onde os indivíduos satisfazem as suas necessidades através do trabalho, da divisão do trabalho e da troca; e asseguram a defesa de suas liberdades, propriedades e interesses através da administração da justiça e das corporações. Trata-se da esfera dos interesses privados, econômico-corporativos e antagônicos entre si. A ela se contrapõe o Estado político, isto é, a esfera dos interesses públicos e universais, na qual aquelas contradições estão mediatizadas e superadas. O Estado não é, assim, expressão ou reflexo do antagonismo social, a própria demonstração prática de que a contradição é irreconciliável, mas é esta divisão superada, a unidade recomposta e reconciliada consigo mesma. A marca distintiva do Estado é esta unidade, que não é uma unidade qualquer, mas a unidade substancial que traz o indivíduo à sua realidade efetiva e corporifica a mais alta expressão da liberdade.

Deve-se chamar a atenção para o fato de que a sociedade civil hegeliana não engloba apenas a esfera das relações econômicas e a formação das classes, mas também a administração da justiça e o ordenamento administrativo e corporativo. Por outro lado, também a esfera pré-estatal é historicamente produzida, não um estado de natureza. Família e sociedade civil - as esferas que aparentemente estão fora e são anteriores ao Estado - na verdade só existem e se desenvolvem no Estado. Não há história fora do Estado. Não há nada fora da história.

Hegel e os Contratualistas. A elaboração hegeliana deve ser entendida tendo como pano de fundo o que vem antes dela, o que prossegue e contra o que se insurge. Sua teoria política é, de certo ponto de vista, o momento mais alto a que chegou o jusnaturalismo - o movimento teórico-político que engloba Hobbes e Locke, Spinoza e Rousseau, mas também Kant e Fichte -, tradição que modifica radicalmente, subvertendo os seus conceitos, criando novos, construindo um método e uma teoria global sem precedentes.

A teoria contratualista faz do indivíduo o alfa e o ômega da vida social. Toma o Estado como algo derivado, uma criação artificial, produto de um pacto, ação voluntária pela qual os indivíduos abdicam de sua liberdade originária em benefício de um terceiro, dando vida a um corpo político soberano que lhes garanta vida, liberdade e bens. Tarefa precípua do Estado é, então, garantir a liberdade individual e a propriedade privada. Por essa via, entretanto, a teoria contratualista é incapaz de explicar por que o Estado pode exigir do indivíduo o sacrifício da própria vida em benefício da preservação e do desenvolvimento do todo. Ao fazer do interesse particular do indivíduo o conteúdo do Estado, ela está, segundo Hegel, confundindo Estado e sociedade civil. Na verdade, o indivíduo sequer escolhe se participa ou não do Estado - é constituído como tal por ele. A relação entre os dois é, portanto, de outra natureza: substantiva e não formal, efetiva e não optativa. Somente como membro do Estado é que o indivíduo ascende à sua "objetividade, verdade e moralidade".

A inversão hegeliana é completa. "A associação como tal é o verdadeiro conteúdo e o verdadeiro fim, o destino dos indivíduos é viver uma vida universal". O Estado é a totalidade orgânica de um povo, não um agregado, um mecanismo, um somatório de vontades arbitrárias e inessenciais. A força associativa do conjunto, da relação do todo com as partes, se revela precisamente na guerra.

A questão da história. Característico dos jusnaturalistas é a contraposição da história entre princípios supra-históricos e a própria história. É por isso, diz Hegel, que eles procuram estabelecer como o Estado deveria ser, em vez de tentar compreendê-lo como ele é. As conseqüências são dramáticas. Ao construírem a teoria do contrato, eles pressupõem a existência - lógica ou histórica - de indivíduos livres e vivendo isolados e separados uns dos outros, fora e antes da sociedade e da história. Criam uma ficção. Esta metodologia, que procura apreender formas objetivas da existência histórica por uma via apriorística e abstrata, apenas cristaliza antíteses históricas em antíteses teóricas, sem resolvê-las. Ao tomarem a natureza humana fora de seu desenvolvimento histórico, acabam por opor às manifestações concretas da história dos homens um conjunto de faculdades, uma possibilidade abstrata, um mero dever ser a partir do qual pretendem refazer o estado de coisas existente. Nada mais distante de Hegel, cuja ambição era não elaborar uma filosofia da história, se por esta se entende uma filosofia sobre a história, mas a de construir a filosofia enquanto expressão especulativa da própria história. Tendo, neste sentido, verdadeiro horror a qualquer tentativa de teorizar um ideal de Estado ou um Estado ideal, a partir do qual a realidade pudesse ser medida e "criticada".

Particularidade: propriedade e liberdade. Influenciado pela Revolução Francesa, o jovem Hegel um dia acreditou na possibilidade de restauração da polis grega. Esta ilusão foi abandonada por volta dos trinta anos, a partir da qual Hegel descobre o que considera a marca distintiva da modernidade. Numa interpretação da República platônica, ele recusa-se a analisá-la como uma utopia, um modelo normativo ou um ideal que nada tem a ver com a realidade concreta. Considera A República como a verdade do mundo grego, o sentido para o qual este tendia e teria alcançado, não tivesse sido bloqueado pelo aparecimento da particularidade. A Cidade-Estado não pode suportar o surgimento da propriedade privada e da individualidade.

É este mal que é portador de futuro. A liberdade subjetiva, a autonomia da pessoa privada só aparecem interiormente com o cristianismo e exteriormente com o mundo romano. Este, no entanto, só foi capaz de pôr uma universalidade abstrata diante de uma pessoa também abstrata. Apenas na modernidade é que a particularidade se emancipa, toma consciência de si e se universaliza. Característico do Estado moderno é ser justamente um todo que subsiste na e através da mais extrema autonomização das partes.

Deve-se chamar a atenção para o fato de que esta concepção não escapou de ser chamada de totalitária, porque organicista. O pressuposto do argumento é que o fundamento epistemológico e ontológico da democracia não pode não ser o individualismo e a visão hegeliana, ao contrário, compartilha com qualquer organicismo o princípio aristotélico do todo que é maior do que a soma das partes. O problema desta interpretação é que pouco há de comum entre uma totalidade que existe quando e porque desenvolve todas as determinações que é capaz de conter, que procede não por aniquilação e eliminação das partes mas por sua diversificação e autonomização, e uma totalidade na qual as determinações e todas as diferenciações desaparecem.

Liberdade concreta. Aristotelicamente, é livre quem é por si mesmo e não por outro. Quem é dependente não é livre. Em suas Lições sobre a filosofia da universal, Hegel diz que "o Oriente sabia e sabe que somente um é livre, o mundo grego e romano, que alguns são livres, o mundo germânico sabe que todos são livres". Esta teoria da liberdade que se realiza historicamente está na base de sua teoria das formas de governo, que retoma a classificação de Montesquieu: "Em conseqüência, diz, a primeira forma que temos na história universal é o despotismo, a segunda, a democracia e aristocracia, a terceira, a monarquia". Para chegar a tais resultados, foi preciso elaborar um novo conceito de liberdade.

Como tudo em Hegel, não existe liberdade em geral. O conceito desta supõe sempre o seu contrário, no caso concreto, a existência de determinada coerção, variável historicamente. No sentido de Locke, ela se define pela ausência de qualquer constrição e, em seguida, pelo limite que outra liberdade me opõe. Rousseau avança para além dessa liberdade meramente negativa, em direção à liberdade positiva. Ambas, especialmente a primeira, se traduzem num sistema de direitos (civis, mas, em seguida, também políticos e sociais), garantidos por lei e pelo ordenamento estatal, direitos estes que estão historicamente, em maior ou menor grau, à disposição dos cidadãos. A segunda configura especificamente essa participação política nos negócios do Estado por parte dos indivíduos que têm por meta fins particulares e os negócios da sociedade civil.

Denunciando suas limitações, a concepção hegeliana de liberdade não elimina mas incorpora tais determinações. Ela considera que a Revolução Francesa colocou mas não resolveu o problema da realização política da liberdade. Considerando-a como um estado em que o homem pode se realizar como homem e construir um mundo adequado ao seu conceito, a concepção hegeliana de liberdade concreta exige que a liberdade se eleve à consciência da necessidade - vale dizer, dos nexos objetivos e da legalidade própria da natureza e da história, das leis de seu desenvolvimento objetivo -, à compreensão do que a realidade é, porque o que é, é a Razão.

De Maquiavel a Hegel. Com Hegel, portanto, completa-se o movimento iniciado por Maquiavel, voltado para apreender o Estado tal como ele é, uma realidade histórica, inteiramente mundana, produzida pela ação dos homens. Nesse foram definitivamente arquivadas as teorias da origem natural ou divina do poder político; afirmada a absoluta soberania e excelência do Estado; a especificidade da política diante da religião, da moral e de qualquer outra ideologia; reconhecida a modernidade e centralidade da questão da liberdade e, sobretudo - pois é esta a principal contribuição de Hegel -, resolvido o Estado num processo histórico, inteiramente imanente.

A reação a Hegel. A preocupação de Hegel não é, como vimos, apenas construir uma teoria do Estado legítimo, uma nova justificação racional do Estado. Ele avança, além disso, para atribuir ao Estado as características da própria razão. Ora, ao considerá-lo "a realidade em ato da idéia ética", o "racional em si e para si", o absoluto no qual a liberdade encontra sua supre ma significação - ele despertou a suspeita generalizada de que estaria muito prosaicamente justificando o Estado existente.

Tentativa mais ousada e polêmica foi aquela realizada por Georg Lukács, num livro escrito na década de 30 sobre O jovem Hegel e os problemas da sociedade capitalista. Lukács não nega a progressiva conservadorização da teoria hegeliana, inegável à simples comparação entre o lugar e a função que a Revolução Francesa ocupa na Fenomenologia do espírito e na seca arquitetura da Filosofia do direito, que é a culminação do sistema hegeliano. No primeiro, a Revolução Francesa está no início do processo de instauração da modernidade; no segundo, no seu fim. Nem reduz esta mudança a uma mera inflexão tática, conjuntural. Ao contrário, tal deslocamento repercute na própria estrutura da teoria: na Fenomenologia, a coruja de Minerva não alça vôo apenas ao cair da noite, ela também anunciava o amanhecer.

A novidade da análise, entretanto, é que é precisamente este retrocesso, esta reconciliação com a realidade, que permite a Hegel perceber e formular com clareza, acuidade e amplitude até então inigualáveis os problemas da sociedade européia de seu tempo. Em outros termos, tal reconciliação é a condição de possibilidade sem a qual Hegel não teria sido o primeiro filósofo a se colocar "do ponto de vista da economia política moderna", conforme o Marx dos Manuscritos de 1844, que Lukács desenvolve. Assim, Hegel é não só o filósofo que mais profunda e adequada cornpreensão tem na Alemanha da essência da Revolução Francesa e do período napoleônico, mas, além disso, o único pensador alemão do período que se ocupou seriamente dos problemas da Revolução Industrial ocorrida na Inglaterra, e o único que então pôs os problemas da economia clássica inglesa em relação com os problemas da filosofia da dialética.

Marcos Katsumi Kay - N1

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