quinta-feira, 20 de novembro de 2008

BALBACHEVSKY, Elizabeth. Stuart Mill: Liberdade e Representação. In: WEFFORT, Francisco C. (org.) Os Clássicos da Política. São Paulo, Editora Ática,

BALBACHEVSKY, Elizabeth. Stuart Mill: Liberdade e Representação. In: WEFFORT, Francisco C. (org.) Os Clássicos da Política. São Paulo, Editora Ática, 2004, vol. 2.
Estrutura: Stuart Mill: Liberdade e Representação. Um novo liberalismo. Indivíduo e Liberdade.
Resumo:

John Stuart Mill é filho de James Mill, considerado um dos fundadores do utilitarismo inglês. Desde a sua mais tenra infância, Mill se viu às voltas com os projetos educacionais de seu pai, determinado a fazer do jovem Mill o porta-voz da escola utilitarista para as novas gerações. Ao longo dos 67 anos de sua vida, Stuart Mill foi testemunha de mudanças fantásticas tanto na sociedade como na política e na economia de seu país, a Inglaterra. Tão importantes quanto estas transformações na economia e na sociedade inglesa daquela época foram as mudanças que se verificaram na política daquele país. Nesta dimensão, os resultados podem ser agrupados em dois grandes blocos. (1) Em primeiro lugar temos a constituição de um conjunto de instituições capazes de canalizar e dar voz à oposição, criando um sistema legítimo de contestação pública. (2) Em segundo lugar, temos o alargamento das bases sociais do sistema político, com a incorporação de setores cada vez mais amplos da sociedade.

Na época em que Stuart Mill viveu, boa parte dos esforços necessários para tornar efetivos os canais de competição política já havia produzido os seus frutos. A questão candente que desafiava a imaginação das elites políticas inglesas era a incorporação "pacífica" da massa de trabalhadores depauperados pela industrialização, que batiam às portas do sistema político.

Um novo liberalismo. A concepção individualista, num certo sentido, coloca o homem antes da sociedade e vê nesta última, principalmente na sua instância política, um elemento de artificialidade que não aparece na concepção organicista. Para esta perspectiva de análise, as ações humanas são auto-referenciadas e importam em si mesmas. Por isso, podemos dizer que esta concepção inverte a relação indivíduo-grupo, fazendo do último um reflexo do primeiro. O agregado social é, assim, o produto de uma espécie de soma vetorial das atividades, interesses e impulsos dos indivíduos que o compõem.

A obra de Mill conduz a teoria liberal da perspectiva descendente para a ascendente. Por este motivo Stuart Mill é por muitos considerado o grande representante do pensamento liberal democrático do século passado. Com Mill, o liberalismo despe-se de seu ranço conservador, defensor do voto censitário e da cidadania restrita, para incorporar em sua agenda todo um elenco de reformas que vão desde o voto universal até a emancipação da mulher . Na obra de Mill podemos acompanhar um esforço articulado e coerente para enquadrar e responder as demandas do movimento operário inglês.

De certa forma, a obra de Mill pode ser tomada como um compromisso entre o pensamento liberal e os ideais democráticos do século XIX. O fundamento deste compromisso está no reconhecimento de que a participação política não é e não pode ser encarada como um privilégio de poucos. E está também na aceitação de que nas condições modernas, o trato da coisa pública diz respeito a todos. Daí a preocupação de Mill em dotar o estado liberal de mecanismos capazes de institucionalizar esta participação ampliada.

Em Mill, não se trata apenas de acomodar-se ao inevitável. A incorporação dos segmentos populares é para ele a única via possível para salvar a liberdade inglesa de ser presa dos interesses egoístas da próspera classe média. O voto para Mill não é um direito natural. Antes, o voto é uma forma de poder, que deve ser estendido aos trabalhadores para que estes possam defender seus direitos e interesses no mais puro sentido que o liberalismo atribui a esta expressão. Entretanto precisamos nos acautelar não vermos em Stuart Mill um pensador democrata radical. Para ele, a tirania da maioria é tão odiosa quanto a da minoria. Isto porque ambas levariam à elaboração de leis baseadas em interesses classistas. Um bom sistema representativo é aquele que não permite "que qualquer interesse seccional se torne forte o suficiente para prevalecer contra a verdade, a justiça e todos os outros interesses seccionais juntos".

Tendo em vista alcançar estes resultados, Mill propõe duas medidas. (1) Em primeiro lugar, a adoção do sistema eleitoral proporcional, que garantiria a representação das minorias, mesmo quando estas se encontrassem dispersas em vários distritos, não representando a maioria em nenhum deles. (2) Em segundo lugar, a adoção do voto plural (a ainda que contados com pesos diferentes, dando às elites culturais o papel de fiel da balança entre os interesses das classes proprietárias e o dos trabalhadores assalariados).

Indivíduo e liberdade. Para compreendermos o valor que Mill atribui à democracia, é necessário observar com mais atenção a sua concepção de sociedade e indivíduo. A posição de Stuart Mill sobre estas questões tem raízes na concepção utilitarista defendida por Bentham e James Mill. Para estes dois autores, a realidade da economia de mercado constitui-se num paradigma teórico para a construção de seus modelos de sociedade e de indivíduo. Desta forma, a natureza humana parece-lhes essencialmente pragmática. O homem é um maximizador do prazer e um minimizador do sofrimento. A sociedade é o agregado de consciências autocentradas e independentes, cada qual buscando realizar seus desejos e impulsos. O bem-estar pode ser calculado para qualquer homem subtraindo-se o montante de seu sofrimento do valor bruto de seu prazer. Prazer, dor, felicidade e ventura são aqui tomados em um sentido quantitativo radical. E possível assim se chegar a um cálculo da felicidade da sociedade, obtido através do somatório dos resultados destas operações para cada indivíduo. O bom governo será aquele capaz de garantir o maior volume de felicidade líquida para o maior número de cidadãos . Para cada ação ou questão política, é sempre possível aplicar este raciocínio para avaliar a "utilidade" de seus resultados.

Stuart Mill retém em sua obra o princípio básico do utilitarismo, que vê no bem-estar assegurado o critério último para a avaliação de qualquer governo ou sociedade. Entretanto, estabelece distinção fundamental que o levará a trilhar caminhos opostos daqueles advogados por seus mestres. Para Stuart Mill, a primeira dificuldade está em se tomar a felicidade como algo passível de mensuração puramente quantitativa. Na avaliação desta dimensão da natureza humana intervém um elemento qualitativo que lhe é intrínseco. É justamente esta a porta por onde Mill introduz uma alteração radical na concepção sobre a natureza do homem. O Homem é um ser capaz de desenvolver suas capacidades. E, ademais, faz parte de sua essência a necessidade deste desenvolvimento.

Temos assim um modelo progressivo da natureza humana e um critério novo para a aferição de um bom governo: "O grau em que ele tende a aumentar a soma das boas qualidades dos governados, coletiva e individualmente". E aqui funda-se a utilidade da democracia e da liberdade. O governo democrático é melhor porque nele encontramos as condições que favorecem o desenvolvimento das capacidades de cada cidadão. "O efeito revigorante da liberdade só atinge seu ponto máximo quando o indivíduo está, ou se encontra em vias de estar, de posse dos plenos privilégios de cidadão."

Foi na defesa desta liberdade que Mill escreveu On liberty. O argumento central desta obra assenta-se numa proposição bastante simples: O elogio da diversidade e do conflito como forças matrizes por excelência da reforma e do desenvolvimento social. Com a perspicácia que lhe é característica, Mill aponta para o fato de que uma sociedade livre, na medida mesmo em que propicia o choque das opiniões e o confronto das idéias e propostas, cria condições ímpares para que "a justiça e a verdade" subsistam. Desta forma, garante-se, através do conflito, O progresso e a auto-reforma da sociedade. Em sociedades não livres, a reforma e o desenvolvimento social só podem aparecer como fruto do acaso ou de esforços intermitentes levados a cabo por déspotas mais ou menos esclarecidos. Para Mill, a liberdade não é um direito natural. É antes de mais nada o substrato necessário para o desenvolvimento de toda a humanidade. E o é principalmente porque ela torna possível a manifestação da diversidade, a qual, por sua vez, é o ingrediente necessário para se alcançar a verdade.

Na obra de Mill encontramos a pré-história de duas noções muito caras à ciência política contemporânea: (1) a defesa do pluralismo e da diversidade societal contra as interferências do Estado e da opinião pública (esta última, a tirania da "opinião prevalecente", a pior, porque mais sistemática e cotidiana); (2) e a perspectiva de sistemas abertos, multipolares, onde a administração do dissenso predomine sobre a imposição de consensos amplos.

Marcos Katsumi Kay - N1